3. Interesse em Recorrer – Distinção da Legitimidade – Particularidade dos Embargos de Declaração - Embargos de Declaração

Pode-se fazer uma analogia entre o juízo de admissibilidade das ações e dos recursos. Assim como há pressupostos genéricos de admissibilidade da apreciação do mérito, há pressupostos que autorizam o órgão a quo a conhecer o mérito do recurso. Não se pode identificar a ideia de interesse, como condição da ação, à de lesão, como já tivemos oportunidade de sustentar. 1 O interesse de agir não se identifica com o direito subjetivo exercitado (fatto valere). Entretanto, há discrepâncias na doutrina a respeito do que seja, exatamente, o interesse de agir, i.e., de como deveria o interesse ser conceituado. 2 Barbosa Moreira, que assevera, com razão, repousar a noção de interesse no binômio necessidade-utilidade. 3 - 4 No que diz respeito, especificamente, ao interesse em recorrer, a perspectiva de que da reforma da decisão, obtida através do recurso, advenha um outro pronunciamento, que seja vantajoso (útil), do ponto de vista prático, à parte recorrente é um dos aspectos que caracteriza seu interesse em recorrer, e supõe, de certa forma, a noção de prejuízo, gravame ou sucumbência. 5 O outro aspecto consiste na necessidade de que a parte lance mão do meio recursal para alcançar tal objetivo. Não há, a nosso ver, necessidade de que se aluda à noção de “adequação” 6 para caracterizar o interesse. Pensamos que a noção de “adequação” está embutida na de “utilidade” 7 , pois, se o meio escolhido é inadequado, será, por conseguinte, inútil. Barbosa Moreira 8 observa que a insistência no elemento prejuízo, gravame ou sucumbência, como elemento pressuposto na noção de interesse, mensurável a partir da diferença que há entre o que se pediu e o que se obteve, faz com que esta noção, assim descrita, só se possa aplicar às decisões do juiz que sejam respostas à iniciativa das partes. Entretanto, mesmo decisões tomadas de ofício, com respeito, por exemplo, à legitimidade das partes, à falta de algum pressuposto processual, apesar de abrangerem matérias sobre as quais o juiz pode manifestar-se sem provocação da parte, são pronunciamentos que, “prejudicam” uma das partes, gerando “gravame”, tornando-a “sucumbente” e fazendo nascer o direito de recorrer. 9 O interesse em recorrer existe independentemente da fundamentação do recurso, e nasce, nos recursos em geral, da circunstância de haver uma decisão prejudicial à parte recorrente. O vencedor, mesmo tendo legitimidade para impugnar a decisão, não pode fazê-lo porque não tem interesse. 10 Se, de um lado, o sucumbente tem interesse em recorrer, o vencedor tem interesse em resistir à impugnação, ou seja, responder ao recurso. 11 Renzo Provinciali 12 afirma que “legitimada passivamente é a parte sucumbente”. 13 Todavia, a legitimação e o interesse são fenômenos diferentes. É comum, entretanto, pensar-se que a legitimação nasce de um interesse, o que, rigorosamente, não é exato. O interesse seria, neste sentido, apenas um critério, anterior à própria lei, de determinação da legitimidade. 14 Mas, neste caso, o fenômeno é outro. Só se cogita do interesse num segundo momento lógico em relação àquele em que se verificou existir a legitimidade. A legitimidade se liga à titularidade, e o interesse, à necessidade e à utilidade de que se lance mão da atividade do Poder Judiciário, por meio do exercício do direito de ação ou do direito de recorrer. A legitimidade que têm as partes para propor e contestar a ação se prolonga ao âmbito dos recursos, do mesmo modo que se pode dizer que o direito de recorrer é uma extensão do direito de ação e do direito de defesa. A legitimação é expressão da posição de um sujeito com relação ao direito objeto do processo 15 e, acrescentamos, com respeito àquele que esteja no outro polo da relação jurídica em questão, um outro sujeito. O interesse, por sua vez, liga-se a uma afirmação relativa ao modo de ser do direito subjetivo, ao momento, ao estado de fato do direito envolvido com o processo. Pode-se fazer uma analogia bastante expressiva entre a necessidade do recurso e a necessidade de se ingressar em juízo, como elementos caracterizadores, respectivamente, do interesse em recorrer e do interesse em ingressar em juízo. O juízo de admissibilidade propicia a concretização do princípio da economia processual, ainda que esteja, o juízo de admissibilidade, ligado a categorias a respeito das quais há discussões no plano doutrinário, e ainda que, às vezes, o exame perfunctório da existência de um direito possa levar, ou não, à possibilidade de um exame mais profundo desse mesmo direito. No fundo, tem-se que a constatação prima facie de um direito, às vezes, é condição de admissibilidade de seu próprio exame. 16 Essas observações se aplicam inteiramente aos Embargos de Declaração, que são recurso de fundamentação vinculada. Mesmo assim, admitir-se que se impeça uma ação de prosseguir, ou que não seja julgado no mérito determinado recurso, porque não tenha sido superado o juízo de admissibilidade, indica um juízo de inviabilidade, é, por isso, em nosso sentir, operativo para o processo, e a operatividade é um aspecto de valor essencial para o direito em geral e, especialmente, para os ramos do direito público. A legitimidade para recorrer, em princípio, é reservada às partes, 17 normalmente, por força de lei. E também a todos aqueles a quem o legislador considere conveniente atribuir, em tese, o poder de recorrer, desde, é claro, que a situação concreta faça nascer, para o legitimado, o interesse em impugnar a decisão. As regras relativas à legitimidade no processo são, sob certo aspecto, condição de operatividade não só do sistema processual, como também, de certa forma, do sistema jurídico como um todo, na medida em que possibilitam uma seleção, a partir de critérios predeterminados, daqueles que podem mover certas ações, impugnar determinadas decisões etc. Não fossem essas regras, no âmbito dos recursos, por exemplo, todos poderiam impugnar todas as decisões, o que seria praticamente inviável. Como a legitimação das partes é condição da ação, encartando-se, pois, na categoria genérica de pressuposto de admissibilidade de julgamento de mérito, também a legitimação para impugnar as decisões judiciais é pressuposto processual específico do procedimento em segundo grau de jurisdição. 18 Têm legitimidade para interpor o recurso, de acordo com o art. 996, caput, do CPC, as partes, o terceiro prejudicado e o Ministério Público, na condição de parte e de fiscal da ordem jurídica. Os terceiros, em geral, têm legitimidade para recorrer, interpondo qualquer recurso, na exata medida em que existe a perspectiva de serem atingidos diretamente (por exemplo, assistente litisconsorcial) ou indiretamente (por exemplo, assistente simples) pela sentença. No entanto, o amicus curiae, que também é terceiro, só se pode valer dos embargos de declaração e do recurso especial ou extraordinário da decisão de IRDR. A lei alude a “quem pode recorrer” e se refere à “parte vencida”, pois esta pode recorrer, porque é parte e tem interesse, porque é parte sucumbente. A parte é legitimada para recorrer; se for vencida, tem interesse. Mas o interesse, em relação aos embargos de declaração, avalia-se de um modo diverso a partir de parâmetros diferentes, daqueles usados pelos recursos em geral, como se viu no item anterior. Por quê? Porque os embargos de declaração são um recurso sui generis. Aliás, é conhecida a discussão, já mencionada, sobre sua natureza não recursal. Sabe-se que quando a decisão é embargável de declaração não há propriamente um “vencido”. Ambos têm interesse em ver a decisão esclarecida, integrada, complementada, tanto o que foi por esta beneficiado, quanto o que deve cumpri-la. Por isso, o art. 996 não diz respeito aos embargos de declaração. Há situações interessantes que demonstram que, em certos casos, há caminhos mais simples para a parte pedir esclarecimentos, em relação à decisão incompleta, não bem compreendida, ou contraditória: a nosso ver, por exemplo, o pedido de esclarecimentos 19 , de que trata o art. 357, § 1º, afasta o interesse de agir da parte em manejar os embargos de declaração, em relação às partes da decisão que não estejam sujeitas a agravo de instrumento, já que a única diferença prática do uso deste tipo de pedido (pedido de esclarecimento) e do recurso de embargos de declaração é que, no caso dos embargos, o prazo para interposição do agravo, seria interrompido. Se o agravo não é o recurso que caberia, subsequentemente, daquela parcela da decisão que precisa ser esclarecida, inexiste interesse para o manejo dos embargos de declaração, já que a forma de impugnação, nestes casos, seria ou a apelação ou as contrarrazões. Dito em outras palavras, o que justificaria o interesse para o manejo dos embargos de declaração seria a vantagem do efeito interruptivo, para o prazo do agravo que caberia daquela parcela da decisão, que poderia ser, por exemplo, a exclusão de um litisconsorte ou o indeferimento de uma prova urgente. Quanto às partes da decisão de saneamento que não comportam agravo, v.g., aquela em que o juiz diz que as partes são legítimas ou defere um pedido de prova, se houver necessidade de esclarecimentos, estes devem ser pleiteados por meio do pedido de que trata o art. 357, § 1.º. V. nosso Nulidadesdo Processo e da Sentença. 10ª ed., S. Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, item 1.2.3.3, p. 52 e ss. ATTARDI, Aldo. Interesse ad agire Padova: Cedam, 1955, p. 2. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, vol. 5, item 166, p. 298. Essa construção doutrinária é encampada pela jurisprudência. A respeito, exemplificativamente, vejam-se: STJ, AgInt no REsp 1.828.055/MS , rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª T., j. 17.09.2019, DJe 19.09.2019; “‘O interesse de agir é identificado pela análise do binômio necessidade-utilidade. (…)”. STJ, AgInt no REsp 1814096/SE , rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª T., j. 05.11.2019, DJe 11.11.2019. No mesmo sentido: STJ, REsp 1.850.104/PE , rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., j. 04.02.2020, DJe 27.02.2020. Satta observa que o interesse não é um genus diverso da sucumbência, mas uma forma de indicá-la. SATTA, Salvatore. Commentario al Codice di Procedura Civile, v. 2, 2.ª parte, p. 19. Termo preferido por Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. 8ª ed., S. Paulo: Malheiros, 2019, vol. II, p. 355. Termo empregado por nós e utilizado por diversos autores, entre eles: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Direito processual civil Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 11; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Direito processual civil. 5ª ed., S. Paulo: RT, 2013, p. 179. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários… op. cit., item 166, p. 298. Argumenta Araken de Assis: “Embora o interesse em recorrer se origine, de fato, relativamente aos pronunciamentos desfavoráveis emitidos em resposta à iniciativa das partes, revela-se manifesta a insuficiência da diretriz presa unicamente a este lado da questão. Ficariam a descoberto todos os atos decisórios em que o órgão judiciário, independentemente de manifestação das partes, se pronuncia ex officio, mostrando-se expressivos os casos de pedido ‘implícito’ (art. 322, § 1º).” Manual dos recursos. 9ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2017, p. 202. GIUDICEANDREA, Nicola. Le impugnazioni civili, Milano: Giuffrè, 1952, v. 1, p. 167. Idem, ibidem Delle impugnazioni in generale. Napoli: Morano, 1962, p. 129. Sobre o problema da superposição dos conceitos de interesse e legitimidade e sobre a crítica que se faz ao conceito de interesse, veja-se o panorama traçado por Renzo Provinciali, ob. cit., p. 136 e ss., inclusive as notas 49 e ss. Criticando essa forma de abordagem, v. Aldo Attardi, ob. cit., p. 212-214. ATTARDI, Aldo, ob. cit., p. 270. Nesse sentido, Donaldo Armelin, A legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro, p. 55. Ibidem. ANASTASI, Lorenzo. Il sistema dei mezzi d’impugnazione del Codice di Procedura Civile ticinese Zurique: Schulthess Polygraphischer Verlag, 1981, p. 125. A respeito, remetemos o leitor ao Capítulo 6, item 6.1.

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