Capítulo II – Audiências Públicas - Título VIII – Técnicas Extraprocessuais de Tutela do Ambiente - Direito do Ambiente

A prática da audiência pública inscreve-se num quadro desejável de humanismo cívico. A velha polis de Platão e Aristóteles já comportava discussões livres das pessoas habilitadas a isso, nos termos e contornos da democracia grega. Cícero, em sua obra Da República, retoma o espírito e as práticas daquela participação. A vida pública de Roma consagrava as discussões nos comitia como prévia para o senatus consultus. E Maquiavel, conhecido por peculiares posicionamentos políticos em O Príncipe, preconiza um exercício de cidadania nos mesmos moldes. Entre nós, a Constituição Federal de 1988 cuidou do tema quando, ao se referir ao processo legislativo, disse caber às comissões parlamentares realizá-la com a participação de entidades da sociedade civil (art. 58, § 2º, II). No ordenamento jurídico-ambiental, mesmo antes da Carta Magna, foi ela prevista na Resolução CONAMA 001, de 23.01.1986, depois disciplinada pela Resolução CONAMA 009, de 03.12.1987, com a finalidade de expor aos interessados o conteúdo dos estudos de impacto ambiental, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito. Ainda em matéria de interesse ambiental, vale lembrar três diplomas: (i) a Lei 9.985, de 18.07.2000, instituidora do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza- SNUC, que exige a realização de estudos técnicos e de audiência pública para identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade de conservação em vias de criação (§ 2º do art. 22); (ii) a Lei 10.257, de 10.07.2001, o conhecido “Estatuto da Cidade”, que, em mais de uma passagem, refere-se à necessidade – e até mesmo obrigatoriedade – da participação da sociedade interessada nos debates e nas tomadas de decisão relativos ao meio ambiente urbano. Ao tratar do Plano Diretor, no art. 40, § 4º, I, se refere “a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”; e (iii) a Lei 10.295, de 17.10.2001, reguladora da Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia, que determina, previamente ao estabelecimento dos indicadores de consumo específico de energia, ou de eficiência energética, a oitiva, em audiência pública, de entidades representativas de fabricantes e importadores de máquinas e aparelhos consumidores de energia, projetistas e construtores de edificações, consumidores, instituições de ensino e pesquisa e demais entidades interessadas (art. 5º) 1 . As audiências públicas encerram um mecanismo de participação popular na tomada de decisões atinentes à gestão da coisa pública. Por meio delas, “busca-se envolver os destinatários de uma decisão governamental no próprio processo decisório. Isso permite não só que o governante reúna maiores informações para agir, como ainda confere maior publicidade e legitimidade à solução alcançada”. 2 1.Previsão legalComo se viu, a audiência pública vem sendo usada em escala crescente, em diferentes âmbitos do Poder Público ou da Administração Pública, para auscultar os sentimentos e os anseios de determinada comunidade, ou da sociedade como um todo, em face de problemas e soluções que interessam à cidadania. Esse instituto jurídico, como instrumento de atuação do Ministério Público de que se está aqui a tratar, tem sua gênese na Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) 3 , que a ela se referiu no art. 27, par. único, IV, sem, no entanto, estabelecer-lhe qualquer disciplina. Mereceu, no entanto, adequada regulamentação, no âmbito do Ministério Público Federal, pela Resolução CSMPF 87, de 03.08.2006, 4 e em leis locais relacionadas à Instituição Ministerial, como a de São Paulo, por exemplo, que lhe atribuiu generoso espaço no Ato Normativo CPJ 484, de 05.10.2006. 5 2.Conceito e objetoAs audiências públicas são instrumentos para coleta de provas, dados, informações ou esclarecimentos de situações das quais decorra ou possa decorrer lesão a interesses inseridos na alçada de cura do Ministério Público 6 . Elas constituem, igualmente, foro e oportunidade para sugestões construtivas da comunidade ou de segmentos interessados da sociedade. Como observou Alexandre Amaral Gavronski em primoroso trabalho sobre as técnicas extraprocessuais de tutela coletiva, a Lei centra seu objeto na defesa dos direitos assegurados constitucionalmente, parecendo referir-se mais diretamente ao exercício da chamada função-ombudsman do Ministério Público, prevista no inciso II do art. 129, CF, ao qual assegura “significativa abrangência ao fazer o instrumento explicitamente aplicável não apenas ao poder público, mas aos entes privados que prestam serviços públicos concedidos ou permitidos, serviços de relevância pública e funções delegadas”. 7 A bem ver, o objeto dessa audiência pública como instrumento de atuação do Ministério Público no âmbito do inquérito civil e investigações correlatas não se confunde com o daquela prevista na Lei 9.784/1999 – direcionada ao cumprimento da instrução e da transparência do processo administrativo –, nem se identifica com aqueloutra disciplinada na Resolução CONAMA 009/1987, como etapa do processo de licenciamento ambiental, através da qual se busca expor aos interessados o conteúdo do produto em análise, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito 8 . Nas audiências convocadas pelo Ministério Público, bem discorreu Hugo Mazzilli, “o objeto não é, naturalmente, o mesmo das audiências públicas de caráter político-governamental; as audiências públicas cometidas ao Ministério Público são apenas um mecanismo pelo qual o cidadão e as entidades civis (as entidades chamadas não governamentais) podem colaborar com o Ministério Público no exercício de suas finalidades institucionais, e, mais especialmente, participar de sua tarefa constitucional consistente no zelo do interesse público e na defesa de interesses transindividuais”. Por meio das audiências públicas, conclui o autor, “o Ministério Público não se submete a uma assembleia popular, nem nelas se votam opções ou linhas de ação para a instituição, e sim por meio delas intenta o Ministério Público obter informações, depoimentos e opiniões, sugestões, críticas e propostas, para haurir com mais legitimidade o fundamento e alternativas para sua ação institucional”. 9 Convém ressaltar duas expressões: fundamento e alternativas. Isso quer dizer que as audiências públicas em pauta não se destinam – nem prioritária nem necessariamente – a consagrar uma posição apriorística ou arbitrária de quem as convocou. Por isso, vale repetir, se trata de buscar fundamento e alternativas para a posição a ser adotada ou a posição a ser definida. Se esse gênero de audiência pública não pode ser condicionante do ato ministerial a ser praticado, não pode tampouco ser reduzida a mera oitiva da comunidade consultada. 3.ProcedimentoAs audiências públicas, organizadas e presididas pelo Ministério Público, serão precedidas de edital de convocação, a que se dará publicidade 10 , do qual constarão: (i) a data, o horário e o local da reunião; (ii) o objetivo; (iii) a disciplina e a agenda da audiência 11 . Da audiência será lavrada ata circunstanciada, que instruirá o inquérito civil onde ocorrer a sua designação, de cujo teor se dará publicidade, através de sua afixação na sede do órgão de execução e sua publicação no Diário Oficial 12 . Na hipótese de o objeto da audiência pública consistir em fato da atribuição de mais de um órgão de execução, inclusive de graus diversos da carreira, ou de outro ramo ministerial, o que teve a iniciativa do ato comunicará sua realização aos demais, com a antecedência necessária 13 . 4.EfeitosEmbora deva ser levado na devida consideração, o resultado da audiência pública não vincula a atuação do órgão do Ministério Público. Sobre o assunto também versaram as seguintes leis: art. 27, par. único, IV, da Lei 8.625, de 12.02.1993 ( Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); art. 39 da Lei 8.666, de 21.06.1993 ( Lei de Licitações); art. 4º, § 3º, da Lei 9.427, de 26.12.1996 (institui a Agência Nacional de Energia Elétrica- ANEEL); art. 32 da Lei 9.784, de 29.01.1999 (regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal); art. 9º, § 1º, da Lei 9.868, de 10.11.1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF); art. 6º, § 1º, da Lei 9.882, de 03.12.1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental); art. 11, IV, da Lei 11.445, de 05.01.2007 (estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico). MAZZILLI, Hugo Nigro. O inquérito civil... cit., p. 347. A Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC 75/1993), que lhe é posterior, passou ao largo do assunto. Art. 22 da Resolução CSMPF 87/2006. Arts. 3º, 60 a 65 do Ato Normativo CPJ 484/2006. Art. 22, caput, da Resolução CSMPF 87/2006 e arts. 3º e 60 do Ato Normativo paulista CPJ 484/2006. Técnicas extraprocessuais de tutela coletiva... cit., p. 327. Art. 1º da Resolução CONAMA 009/1987. O inquérito civil... cit., p. 348. No Estado de São Paulo, segundo o Ato Normativo CPJ 484/2006, é obrigatória a publicação no Diário Oficial e sua afixação na sede da Promotoria de Justiça, com antecedência mínima de dez dias úteis (art. 62). Art. 22, § 1º, I a III, Resolução CSMPF 87/2006; art. 61 do Ato Normativo paulista CPJ 484/2006. Art. 22, § 3º, Resolução CSMPF 87/2006; art. 63 do Ato Normativo paulista CPJ 484/2006. O Ato Normativo paulista CPJ 484/2006 fala em 10 dias úteis (art. 64).

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