4. Procedência e Veículo das Medidas Provisórias

4.1. ProcedênciaO constituinte encontrou na experiência constitucional italiana a inspiração para a instituição da medida provisória no Brasil. A Itália unificada conheceu apenas duas Constituições. O Estatuto Albertino, flexível, de 1848, e a vigente Lei Fundamental, de 1947, promulgada após a queda do regime fascista e o fim da segunda Grande Guerra. A primeira Constituição italiana desconhecia a medida provisória. Não obstante, em situações de emergência, o Governo editava decretos com força de lei e depois os submetia à apreciação parlamentar. Embora com a desaprovação de boa parte da doutrina e tentativas isoladas da jurisprudência no sentido de circunscrever o uso dos decretos com força de lei, o expediente acabou incorporado à prática constitucional com a invocação da necessidade como fonte autônoma do direito. 1 Os graves problemas sociais e econômicos ocorridos no pós-Primeira Guerra Mundial e demandantes de pronta solução foram utilizados para justificar o expediente. Nesse compasso, alguns juristas inclusive aceitaram a edição das medidas argumentando tratar-se de negotiorum gestio del’esecutivo a favore del legislativo. 2 A Lei 100, de 31 de janeiro de 1926, conferiu expressamente ao Governo o poder de editar decretos-leis nos casos de absoluta e urgente necessidade. Entretanto, já em 1939 (Lei 129, de 19 de janeiro) o legislador pretendeu desestimular o uso da espécie normativa, admitindo-a, em determinadas hipóteses, mas, em especial, para disciplinar urgentes medidas de cunho financeiro e tributário e, igualmente, em caso de estado de guerra. 3 Por ocasião da elaboração da Constituição de 1947, pleiteou-se a supressão dos decretos-leis. 4 Entretanto, sustentando os constituintes que a não adoção da medida poderia, em situações emergenciais, desafiar o renascimento de decretos de urgência e necessidade não autorizados e, portanto, ilegítimos, preferiram aceitá-la, disciplinando, não obstante, os requisitos para a sua adoção. Por isso, Paolo Biscaretti Di Ruffia assinala que a Constituição italiana atual, “(...) depois de algumas incertezas evidenciadas na Constituinte por oposição de vários de seus membros a qualquer referência a tal instituto – acabou admitindo-a explicitamente, se bem que com múltiplas cautelas e limitações, em grande medida determinadas pela experiência (não muito agradável!) havida na Itália (...)”. 5 A Lei 400, de 23 de agosto de 1988, em seu art. 15 e parágrafos, circunscreve alguns limites, tanto procedimentais quanto substanciais, para a emanação do decreto de necessidade e urgência. 6 O § 1.º daquele artigo determina que o ato do Executivo seja expressamente denominado “decreto-lei” e indique, no preâmbulo, as circunstâncias extraordinárias de necessidade e de urgência para a sua adoção. O § 2.º estabelece, de maneira ampla, ser vedado, mediante decreto-lei: a) atribuir a delegação legislativa prevista no art. 76 da Constituição; b) versar sobre matérias que, necessariamente, devem ser regulamentadas pelo procedimento legislativo ordinário (art. 72, § 4.º, da Constituição Italiana); c) renovar decretos-leis rejeitados por uma das duas Câmaras; d) regulamentar as relações jurídicas firmadas sob a égide do decreto-lei não convertido; e) repristinar a eficácia de dispositivos declarados inconstitucionais pela Corte por vício de procedimento. O § 3.º estatui que o decreto-lei deve conter medidas de imediata aplicação, e cujo conteúdo deve ser específico, homogêneo e acorde ao respectivo título. Os §§ 4.º, 5.º e 6.º fixam outras regras tocantes ao procedimento e ao conteúdo dos provimentos de urgência. 4.2. Veículo de ediçãoPreliminarmente, uma observação terminológica: a Constituição italiana, no art. 77, trata dos decretos-lei enquanto medidas provisóriascom força de lei. Isso significa que, rigorosamente, no caso italiano, decreto-lei e medida provisória não se confundem, haja vista que também atos administrativos podem constituir provvedimenti provisori, se presentes os pressupostos autorizadores da medida de urgência. Com efeito, o art. 13 da Constituição de 1947 prevê que “em casos excepcionais de necessidade e de urgência, indicados taxativamente em lei, a autoridade de segurança pública pode adotar medidas provisórias, que devem ser comunicadas em 48 horas à autoridade judiciária e, se esta não convalidá-las nas 48 horas seguintes, têm-se por revogadas e não surtem qualquer efeito.” Isso não torna incorreto o uso do termo “medida provisória” para fazer referência ao ato normativo do direito italiano, mas serve apenas para registrar que o decreto-lei é o veículo de edição apenas da medida provisória que tem força de lei, e não de toda e qualquer medida provisória, nos termos da Constituição Italiana. Tanto na Espanha como na Itália, as medidas provisórias com força de lei são veiculadas por meio de decretos. Por isso, são chamadas de decretos-leis. As normativas não se confundem com o seu veículo de edição. No Brasil, o Constituinte preferiu tratar a medida provisória como espécie normativa autônoma, integrante do processo legislativo, na forma do art. 59 da Lei Fundamental, do mesmo modo que as Emendas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as resoluções e os decretos-legislativos. Então, com a Constituição de 1988, o Presidente da República edita medidas provisórias veiculadas por um instrumento que assume idêntica denominação. O mesmo não ocorre com os regulamentos, pois veiculados por meio de decretos. 7 Na Itália, o decreto-lei era considerado, num primeiro momento, contrário ao Estatuto Albertino, sendo, depois, tolerado e, por fim, regulado pelo fascismo com a Lei 100, de 31 de janeiro de 1926 (BARILE, Paolo. Corso di diritto costituzionale. 2. ed. Padova: Cedam, 1964, p. 201). VIRGA, Pietro. Diritto costituzionale. 6. ed. Milano: Giuffrè, 1967, p. 365. Idem. ESPOSITO, Carlo. Decreto-legge. Enciclopedia del diritto Giuffrè, 1958. p. 833. Biscaretti Di Ruffia, op. cit., p. 494. Tradução livre. No ponto, questiona-se se essa lei, por encontrar-se em patamar hierarquicamente inferior ao da Constituição, deveria, de fato, ter caráter cogente em relação ao decreto-lei, levando em conta, ainda, a possibilidade de ser modificada pela própria via da decretação de urgência. Sobre o tema, Alessandra Concaro observa que a doutrina majoritária acompanha o entendimento da Corte constitucional italiana, no sentido de que a Lei 400 de 1988 somente é cogente em relação às medidas provisórias naquilo que puder ser implicitamente dedutível da Constituição (CONCARO, Alessandra. Il sindacato di costituzionalità sul decreto-legge Milano: Giuffrè, 2000, p. 57-59.). Em sentido contrário, Romboli recorda a mensagem de 29 de março de 2002, pela qual o Presidente da República restituiu às Câmaras a lei de conversão do Dec.-lei 4/2002. Na ocasião, o Presidente sustentou que a Lei 400/88 (sobretudo as previsões contidas em seu art. 15, tocantes ao decreto-lei) embora fosse uma lei ordinária, e por fixar requisitos para o uso ordinário do decreto-lei, deveria ser, tal qual as normas constitucionais, observada com rigor, apesar de a Corte constitucional já ter-se posicionado em sentido contrário (Sentenza 391/1995). (ROMBOLI, Roberto. Decreto-legge e giurisprudenza della Corte costituzionale. In: SIMONCINI, Andrea (org). L’emergenza infinita. La decretazione d’urgenza in Italia. Macerata: EUM, 2006, p. 133). Acompanha o entendimento MANZELLA, Andrea. Il parlamento. 3. ed. Bologna: Il Mulino, 2003. p. 361, para quem “O parâmetro de legitimidade do decreto-lei é, pois, bem complexo. Concorrem os pressupostos do art. 77 da Constituição (...) e os requisitos da lei 400 de 1988, que é sim uma lei ordinária, mas que o Presidente da República Ciampi tem enfaticamente considerado que deva ‘ser, da mesma forma, rigorosamente observada’”. Segundo Celso Bastos (Curso de Direito Constitucional cit., p. 381), “Do ponto de vista subjetivo, isto é, encarado do ângulo da autoridade competente para sua expedição, o regulamento é próprio do Chefe do Poder Executivo, que o expede por via de decreto”. Não há na doutrina jurídica brasileira (e nem na experiência) qualquer dúvida a respeito do tema.

Medidas Provisórias - Ed. 2021

4.1. Procedência

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