Conclusão

Buscou-se demonstrar neste trabalho que a evolução do Direito Internacional Privado está em curso e acompanha a centralização do direito no ser humano por intermédio de mecanismos próprios. O instituto clássico de Direito Internacional Privado das normas de aplicação imediata, ou public policy rules, apresenta-se como um mecanismo eficaz para a manutenção da ordem jurídico-econômico-social do foro, in casu, na salvaguarda de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, porque baliza o contrato internacional de pesquisa clínica no sentido de sua validade. O protagonista e fio condutor deste estudo – o contrato internacional de pesquisa clínica, multicêntrica e global de fase III – é celebrado entre partes ausentes, sendo que o proponente é o patrocinador estrangeiro, por se tratar de medicamento experimental que ainda não é registrado pela agência reguladora norte-americana, a Food and Drug Administration (FDA). Configura-se como contrato atípico puro, multiconectado, com algumas disposições gerais específicas inerentes à operação econômica importantes para o patrocinador, e que não podem ser derrogadas sem comprometer os elementos essenciais que designam sua natureza jurídica – com base tanto no direito estrangeiro quanto no brasileiro. O contrato prevê obrigações para serem executadas no Brasil por centros de pesquisa clínica brasileiros. O protocolo de pesquisa contendo a configuração do estudo é aprovado pelas autoridades regulatórias e éticas brasileiras, respectivamente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que também analisa e aprova o modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que deverá receber a anuência do participante, geralmente brasileiro. Isto é, o cenário indica que esta relação jurídica multiconectada possui a mais íntima, próxima e direta conexão com o Brasil e, portanto, é a lei brasileira que “deseja” ser aplicada para reger as obrigações. O artigo 9º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, com redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010) visa esclarecer o lugar de constituição das obrigações para determinar a lei aplicável que é, em geral, justamente a lei do local da constituição da obrigação (artigo 9º, caput), preconizando que: “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. Essa regra geral coincide com a prevista no artigo 435 do Código Civil, ao estipular que: “Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto”. Considera-se proposta, a última versão, na forma da lei brasileira, que adota a teoria da expedição da resposta como o momento em que se aperfeiçoa a obrigação nos contratos entre ausentes. Pela estreiteza da norma de conflito brasileira, o contrato internacional de pesquisa clínica, firmado entre partes ausentes, reputa-se celebrado no país de residência do proponente, isto é, no local de situação do patrocinador, no caso, a matriz da empresa multinacional farmacêutica (não raro os Estados Unidos da América). A despeito das críticas realizadas à rigidez da opção da LINDB, no caso de contratos internacionais celebrados entre ausentes, por desconsiderar outras possibilidades de escolha da lei mais adequada, como a lei mais próxima à relação jurídica formada, a LINDB, em seu artigo 9º, não prevê a autonomia da vontade, embora muitos juristas sejam favoráveis a essa alternativa. Essa afirmação decorre da leitura do artigo e somente com a revisão da LINDB que se poderão adotar princípios como o da autonomia da vontade ou da proximidade para a escolha da lei aplicável no Brasil. Por outro lado, ainda que a norma de conflito indique a aplicação do direito estrangeiro para reger o contrato internacional de pesquisa clínica celebrado entre partes ausentes, normas de aplicação imediata, ou public policy rules, balizam o contrato ao afastarem a norma de conflito aprioristicamente em prol de uma conexão especial e exclusiva, que vincule a relação jurídica multiconectada imediatamente ao foro, por razões de salvaguarda de valores ali vigentes. O Direito Internacional Privado assume, assim, função de proteção de pilares fundamentais da organização social, que se refletem na garantia da validade jurídica do contrato de pesquisa clínica, principalmente no que tange à realização de direitos fundamentais do participante da pesquisa. Dessa forma, constata-se que o Direito Internacional Privado contemporâneo não é impermeável a princípios de direito, não é cego aos resultados, não é neutro, pragmático e tampouco asséptico. Até o momento (agosto de 2019), não existe no Brasil uma lei específica sobre pesquisas com seres humanos. Há em tramitação projeto de lei, oriundo do Senado Federal e recepcionado pela Câmara dos Deputados, sob o número 7.082, de 2017, que trata da pesquisa clínica com seres humanos e institui o sistema nacional de ética em pesquisa clínica com seres humanos. A Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), é ainda o principal diploma normativo correspondente que rege a pesquisa clínica no país. Contudo, o fato de ser ato infralegal pode enfraquecer sua efetividade, já que carece de legalidade stricto sensu. Documentos internacionais provenientes de associações privadas, como os emanados da Associação Médica Mundial e do Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH), não são rígidos e tampouco cogentes; não há ilícito internacional em seu descumprimento, ou seja, não acarretam direta e formalmente responsabilidade internacional. No entanto, são documentos que geram efeitos tanto no âmbito estatal, na medida em que autoridades regulatórias nacionais os aplicam, quanto no âmbito privado, ao constituírem o rol de normas que regem a pesquisa clínica globalmente, inclusive o contrato de pesquisa clínica. Isso representa um fenômeno contemporâneo de direito internacional e o advento de um costume internacional, sob a influência das empresas farmacêuticas, na seara da pesquisa clínica multicêntrica e global. Desde meados do século XX, o Direito vem apresentando clara tendência à integração e também uniformização, como consequência das diferentes formas de compatibilização jurídica entre sistemas nacionais e internacionais. E essa perspectiva resulta do reconhecimento generalizado da centralidade do ser humano e de seus direitos fundamentais na estruturação da ordem jurídica do mundo contemporâneo. É uma realidade o reconhecimento do Direito da Pesquisa Clínica como ramo sui generis do Direito brasileiro, impregnado por um costume internacional, igualmente pautado pela dignidade da pessoa humana.

Contrato de Pesquisa Clínica - Ed. 2020

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