Conclusão - Por que a Autorregulação Voluntária Funciona? O Caso Anbima

As pesquisas indicam a possibilidade de haver várias causas que possam explicar a atitude de submissão dos participantes da ANBIMA às suas decisões. Uma delas é a de que a obediência seja explicada a partir da racionalidade da norma. Para isto, não basta que esta tenha sido elaborada seguindo critérios teóricos predefinidos, há que se verificar se, na prática, ela está sendo obedecida, se está alcançando o objetivo de mudar o comportamento dos indivíduos por ela afetados e, principalmente, se está atingindo o fim que motivou a sua elaboração. É preciso, pois, estar atento à eficácia das normas produzidas, à pertinência de seu conteúdo e aos efeitos provocados na sociedade. Os resultados dos estudos realizados neste trabalho indicam que as normas da Autorregulação da ANBIMA atendem a esses critérios, o que credencia a racionalidade da norma como uma das explicações possíveis para a obediência. Seguindo a lógica proposta por BECKER 1 , seria esperado que o infrator contestasse judicialmente as penalidades aplicadas pela Autorregulação da ANBIMA – cujos valores são substancialmente maiores que os relativos às penas que são infligidas no processo administrativo sancionador – para reduzir os custos totais da transação e, por este caminho, tornar compensadora a infração cometida. Mas não é o que se verifica na prática (Ilustração 23), o que coloca em xeque a teoria desse autor, para quem o infrator adota os custos como critério decisório para o cometimento da infração. Antes, contudo, de se concluir que os custos não servem para explicar a obediência, é preciso levar em conta que a decisão de contestar a pena aplicada pela Autorregulação da ANBIMA implica custos que não são exclusivamente financeiros. Uma disputa judicial poderia levar a um distanciamento da Associação e de seus órgãos de representação, com a consequente perda de contatos comerciais, da publicidade gratuita gerada a partir de eventos associativos e da exposição que esses organismos geram. Assim, a decisão de recorrer ou não à Justiça também tem que levar em consideração os custos de estar presente nas atividades de representação da ANBIMA, de ter acesso direto às informações sobre os assuntos mais atuais que são discutidos no mercado e de ter assento em fóruns que geram interação com pares de mercado e com autoridades constituídas. Estes custos também precisam ser medidos, porque afetam as estratégias de ação do participante da autorregulação em relação a cada uma das diversas etapas ao longo do processo, ganhando dimensão ainda maior na hora de decidir se se acata ou se se recorre de uma penalidade recebida. Ao se adotar este conceito ampliado de custo, que transcende os limites eminentemente financeiros impostos pela teoria de BECKER, passa a fazer sentido a resposta dada na pesquisa realizada com os infratores das regras da Autorregulação da ANBIMA, que mostra que a decisão de obedecer passa pela ponderação dos custos de recorrer, fazendo com que este elemento também sirva, em alguma medida, como explicação para a obediência. Não há dúvidas de que a cooperação dos interessados ajuda a reduzir as falhas de mercado e a ineficiência, já que alguns problemas têm múltipla dimensão e a descentralização contribui para a obtenção de mais informação. E tem a vantagem de trazer, para a elaboração da norma, uma maior expertise sobre os temas regulados, além de permitir que seja criado o “espírito comunitário”, que pode ser traduzido como o sentimento do regulador de que está agindo para o bem da comunidade. No caso da autorregulação voluntária, tem ainda o benefício de permitir que a norma seja feita por reguladores que estão próximos às circunstâncias vividas pelo regulado 2 , facilitando o conhecimento das preferências destes, minimizando as externalidades e contribuindo, de modo efetivo, para uma maior eficiência da norma. E dado o conteúdo técnico das normas da Autorregulação, são ainda maiores os benefícios da participação de experts que dialoguem e criem múltiplas perspectivas e um senso de responsabilidade pelo resultado. Assim, ainda que as pesquisas empreendidas não tenham permitido chegar à conclusão de que a elaboração das normas por experts garanta, isoladamente, a obediência, não se pode deixar de reconhecer que a atuação desses especialistas nos processos de Autorregulação da ANBIMA produz um maior alinhamento entre os comandos normativos e as práticas do mercado regulado, por causa da afinidade temática, reduzindo as zonas de atrito que levam à disputa judicial, de modo que a sua contribuição para a obediência não pode ser descartada. Acerca da obediência que decorre da negociação, os estudos de COGLIANESE levam à conclusão de que este fator não explica a obediência, pois é possível que tenham sido selecionadas as questões mais desafiadoras ou conflituosas para negociar, e, se assim for, a correlação com a situação da ANBIMA tende a ser baixa, já que todas as regras da Associação são negociadas. 3 Descartada a possibilidade de viés, a negociação da norma pode ser vista como elemento para alinhavar a comunhão de interesses que cimenta a unidade de princípios 4 e amplifica as possibilidades de haver consenso em torno de valores que aparecem em primeiro plano na relação com todas as contrapartes comuns aos participantes das comunidades afetadas pela norma. As razões que levaram COGLIANESE a repudiar a negociação como forma de explicar a obediência são aplicáveis para o caso por ele estudado, mas não podem ser transplantados para a Autorregulação da ANBIMA, não podendo, por isso mesmo, ser eliminada a possibilidade de que a negociação sirva para explicar a obediência, neste caso. Entre as teorias consideradas neste trabalho, a de TYLER seria uma forte candidata para explicar a obediência de instituições que têm na reputação um elemento crucial para a atuação nos mercados financeiro e de valores mobiliários. Mas, para atestar que esta é a explicação para a obediência, seria preciso demonstrar que a busca pelo socorro judicial afeta a imagem da parte recorrente e este trabalho não chegou tão longe. Ao contrário, até porque apurou que os apenados pela autorregulação concedida, exercida pela BSM, chegam mesmo a assumir a postura de inadimplentes, motivo pelo qual são acionados judicialmente, sem que tenham sido identificadas maiores preocupações reputacionais por causa das cobranças feitas pelas vias judiciais. Não foi possível chegar, por este caminho, a uma confirmação de que a reputação explique a obediência, mas existe uma outra forma de testar esta hipótese, que seria a partir da teoria de COGLIANESE, para quem o comportamento dos julgadores é afetado pela expectativa de que a decisão possa ser apreciada por uma autoridade judicial. A reputação em jogo, neste caso, seria a da própria Autorregulação da ANBIMA e não mais a dos apenados. A premissa de partida seria a mesma adotada por TYLER, de que a reputação não se baseia apenas no reconhecimento ao poder detido pela entidade, mas também na justificação desse poder. Daí é que os apenados pela Autorregulação da ANBIMA aceitariam a decisão não apenas pela obrigação assumida de cumprir as regras da Autorregulação, mas também por acreditarem que a instituição age de acordo com uma moral comum aos seus participantes. 5 Essa moral é que seria a definidora do modelo de justiça a ser seguido, de modo que a obediência seria o padrão para a aceitação do apenado no grupo de participantes da ANBIMA. 6 Como as decisões da Autorregulação da ANBIMA não são usualmente submetidas à disputa judicial, seria necessário adaptar a teoria de COGLIANESE para que fosse também aplicável ao escrutínio feito pelos participantes do próprio grupo. Superada esta barreira, caberia perguntar se o controle das decisões da Autorregulação da ANBIMA, feito pela comunidade autorregulada, não seria motivo suficiente para a adoção de um critério mais rigoroso para a tomada das decisões pelos Conselhos de Autorregulação da ANBIMA. Sendo afirmativa a resposta, o círculo estaria fechado, pois a comunidade de associados e aderentes aos códigos de autorregulação da ANBIMA exerceria uma pressão subliminar sobre as decisões tomadas pelos Conselhos de Autorregulação, o que levaria estes a tomarem decisões bem fundamentadas. E estas seriam acatadas, sem contestação judicial, porque este é o comportamento que o grupo adota e espera que seja aderido pelos seus integrantes. Admitida esta via de interpretação, a reputação poderia explicar a obediência. Em suma, os dados levantados nos estudos que embasam este trabalho sugerem que o motivo para a obediência não é apenas de um tipo, mas sim um conjunto de fatores que se combinam num caleidoscópio que se altera em sucessões vertiginosas e varia de acordo com o interessado, não podendo, por isso mesmo, ser explicado a partir de elementos externos, comuns a todos os associados e observáveis por uma pesquisa empírica. A razão para a obediência seria, talvez, uma combinação das diversas hipóteses levantadas neste trabalho, além de outras que nem sequer foram cogitadas, criando uma hipótese dinâmica e volátil, como se replicasse, no campo científico, o mercado de que trata, que hoje é visto de um modo, mas certamente terá outro formato na próxima visita que se fizer ao tema. .Parte-se do pressuposto de que os custos sejam a única variável a ser decidida para a tomada da decisão, considerando-se, portanto, que os custos processuais sejam idênticos e as chances de reversão judicial sejam as mesmas para as decisões tomadas pela Autorregulação, pelo CRSFN ou por qualquer outro órgão. .ESTY considera que o regulador que esteja próximo ao regulado está em vantagem quando comparado àquele que está distante, como é o caso dos reguladores de organismos supranacionais. .COGLIANESE, 2002, p. 1135-1136. .Que BASCHET chamou de “personalidade moral” da entidade. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. Prefácio de Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 139. .JACKSON, Jonathan; BRADFORD, Ben; HOUGH, Mike; MYHILL, Andy; QUINTON, Paul; TYLER, Tom R. Why do people comply with the law? Legitimacy and the influence of legal institutions. British Journal of Criminology, Reino Unido, v. 52, n. 6, p. 1051-1071, fev. 2012. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228128576_Why_Do_People_Comply_with_the_Law_Legitimacy_and_the_Influence_of_Legal_Institutions . Acesso em: 11 out. 2019. .CREMER; TYLER, 2005, p. 121.

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