2.14 Conclusões principais

2.14 Conclusões principais 1. No Estado Absolutista, o rei possui a concentração de poderes e, para governar, valia-se do gubernaculum e da iurisdictio. O gubernaculum era a instituição de governo e a iurisdictio instituição de garantia. Por meio do gubernaculum, o rei relacionava-se com outros Estados e cuidava internamente dos chamados assuntos de Estado (arcana imperii), cuja própria natureza determinava que eles fossem confiados a uma única pessoa para que pudessem ser decididos de forma rápida. Esse poder, por sua própria natureza, era discricionário, extra legem, não podia ser exercido com base nas leis estabelecidas e era confiado à prudência do rei. Por outro lado, a iurisdictio, que consistia no dever de administrar a justiça. Ao exercer esse poder, o rei estava limitado ao direito e deveria pronunciar-se secundum legem. 2. O constitucionalismo se desenvolveu por séculos tendo como mote principal coibir os excessos do Poder Público. É o constitucionalismo que coloca freios e racionaliza o poder. Daí que a função da jurisdição constitucional consiste na limitação, racionalização e controle do poder estatal e social, na proteção das minorias e os débeis e na reparação dos novos perigos para a dignidade humana. 3. A consolidação do constitucionalismo mediante a concretização da jurisdição constitucional de atuação contramajoritária consiste em verdadeira conquista do direito pós-guerra. Ou seja, o controle de constitucionalidade tal qual concebemos na atualidade, é fruto de intenso desenvolvimento desde a judicial review com o precedente Marbury vs Madison, bem como a teoria do controle abstrato de constitucionalidade de Hans Kelsen que limitava-se tão somente aos aspectos formais da ilegalidade da lei. Assim, a atuação contramajoritária do Judiciário está intrinsecamente relacionada com a dimensão dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria. 4. A função contramajoritária do Judiciário, mormente do STF, não se apresenta relevante apenas no que diz respeito à proteção de direitos fundamentais do cidadão. O próprio sistema constitucional depende dessa atuação, uma vez que, frise-se novamente, nada é mais contramajoritário que o próprio controle abstrato de constitucionalidade. 5. Hodiernamente, a existência e a preservação dos direitos fundamentais são requisitos fundamentais para se estruturar o Estado Constitucional, tanto no âmbito formal quanto material. Para tanto, os direitos fundamentais possuem duas funções principais: limitação do Poder Público e proteção contra eventuais maiorias que possam se formar, dispostas a suprimir ou mitigar algum direito fundamental. 6. O controle sobre as leis que o constitucionalismo proporcionou teve impacto muito pouco significativo no controle dos atos do Poder Executivo. Atualmente, é muito menos polêmica e contestada a possibilidade de o Judiciário realizar o controle da lei, seja em seu aspecto formal e material, do que do próprio ato administrativo. 7. Todo poder discricionário se apoia em uma realidade de fato que funciona como pressuposto fático da norma de cuja aplicação se trata. Esse fato há de ser uma realidade, e a realidade há de ser uma e somente uma: não pode ser e não serão mesmo tempo, ou ser simultaneamente de uma maneira e de outra. A valoração da realidade poderá às vezes ser objeto de uma faculdade discricionária, mas a realidade, como tal, se se produziu o fato ou não, e como se produziu, isto não pode ser objeto da faculdade discricionária, porque não pode ficar ao arbítrio da Administração discernir se um fato ocorreu ou não, ou determinar que algo ocorreu se realmente não foi assim. O milagre não tem lugar no campo do Direito Administrativo. 8. Não há nenhum exagero em fazer a associação entre o atual poder discricionário e o gubernaculum, uma espécie de discricionariedade fundamental. É exata- mente nesse contexto em que se insere a obra, se atualmente é possível o controle material de constitucionalidade da lei, com maior razão o ato administrativo não pode ficar imune ao que determina o bloco da legalidade. No Estado Constitucional, não há poder que possa ficar imune ao controle jurisdicional, ou seja, não encontra sustentação jurídica a afirmação de que o mérito do ato administrativo está desde sempre imune ao controle jurisdicional, isso porque tal assertiva repristina a forma de agir do gubernaculum, em que um poder pode agir extra legem sem precisar prestar conta de seus atos. 9. A discricionariedade pode-se apresentar de diversas formas. A primeira delas é aquela em que a discricionariedade é a interpretativa. Ela apresenta-se de forma contraposta à atuação vinculada. A doutrina imagina que nos casos de atuação vinculada a norma e a resposta para o caso concreto já está contida na própria lei, devendo, portanto, usar-se a subsunção quando essa resposta não estiver na própria lei, ou seja, for necessária a interpretação da lei pela Administração estar-se-á perante uma atuação discricionário. Essa primeira apresentação da discricionariedade – contrapondo-a à decisão vinculada subsuntiva – apresenta visão defasada sobre hermenêutica e aplicação do direito, tal qual demonstramos no primeiro capítulo da obra, uma vez que se continua apostando na subsunção e na possibilidade de pré-fabricar normas prontas para o caso concreto. 10. Outra forma de discricionariedade é a optativa, que é um dos principais subterfúgios para se negar o exame do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Em outros termos, o Judiciário deixa de examinar a legalidade e a constitucionalidade do ato, sob o argumento de que tendo em vista que diversas decisões poderiam ser tomadas, por consequência, não poderia o Judiciário pronunciar-se sobre o (des) acerto delas. 11. A terceira forma de discricionariedade é a performática. São os atos administrativos que criam sua autoblindagem na medida em que afirmar estarem pautados ou no interesse público ou no critério de conveniência e oportunidade. A discricionariedade performática é a que frequentemente se manifesta em nosso ordenamento. 12. A quarta forma de discricionariedade é a volitiva, faceta da discricionariedade em que ela significa a concretização da vontade da lei ou do Administrador. A discricionariedade volitiva não se encerra apenas em legitimar o ato administrativo na vontade da lei ou do legislador. Por incrível que pareça, há quem defenda a discricionariedade fundada na vontade do próprio administrador. 13. A quinta forma de discricionariedade é a técnica. Em sentido geral, entende-se por discricionariedade técnica a atribuição à Administração, pela norma jurídica, de poder para atuar com fundamento em critérios fornecidos por saberes especializados, sejam esses saberes derivados de ciências puras ou aplicadas. 14. Diante desta situação, propõe-se uma nova concepção de administração pública. A concepção de Administração Pública paritária (par a par com o cidadão) decorre da nova posição constitucional da Administração Pública, que, por sua vez, é conformada e informada por dois aspectos: a intensificação da subordinação à lei da Administração, designadamente a exigência de um fundamento legal específico para cada uma das suas decisões, e a integração dos cidadãos particulares na Constituição e no ordenamento do Estado, pela via do reconhecimento de direitos fundamentais diretamente aplicáveis. A partir disso, as posições do indivíduo e do Estado são necessariamente objeto de normas jurídicas vinculativas de ambos e aquelas posições juridicizam-se: o Estado e o indivíduo apresentam-se um perante o outro como titulares de direitos e deveres recíprocos. 15. No Estado Constitucional, é essencial a subordinação da Administração à lei nas suas relações com os particulares, bem como o reconhecimento de posições constitucionais destes últimos de que aquela não possa dispor – os direitos fundamentais. A existência de uma daquelas posições jurídicas subjetivas, seja da Administração ou do cidadão, é, por si só, suficiente para afirmar a existência de uma relação jurídica administrativa, que consubstancia o vínculo resultante da atribuição recíproca de um direito e de uma vinculação. 16. A principal forma de se diferenciar o ato vinculado do ato discricionário é que o primeiro dispensaria a interpretação, enquanto o segundo seria interpretativo. No paradigma pós-positivista, não se concebe a resolução de nenhuma questão jurídica sem a intermediação da hermenêutica. Assim, apresenta-se defasada a concepção que nega à Administração a possibilidade de realizar qualquer interpretação da legislação vigente, devendo atuar a partir de aplicação silogística da legislação. 17. No Estado Constitucional, o princípio da legalidade sofre releitura de modo que a Atividade da Administração Pública passa a estar vinculada ao texto constitucional. A atividade administrativa está sempre condicionada, pela lei, à obtenção de determinadas consequências, e o administrador, ao exercê-la, não pode ensejar consequências diversas das pretendidas pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar atingir as consequências que a lei teve em vista quando autorizou ou determinou sua prática, sob pena de nulidade. 18. No Estado Constitucional, não se deve mais distinguir entre Estado e sociedade. O Estado Constitucional caracteriza-se não apenas pelo princípio da legalidade formal que subordina os poderes públicos às leis gerais e abstratas, mas também pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. 19. Os direitos fundamentais constituem conquista histórica da sociedade oriunda do desenvolvimento do próprio constitucionalismo. Assim, a não observância dos direitos fundamentais caracterizaria, verdadeiramente, retrocesso no próprio processo civilizador de cada sociedade. Dessa maneira, não é a simples alegação de supremacia do interesse público sobre o privado que constitui a base do Estado Constitucional. 20. Na seara administrativista, dever de coerência e a visualização do direito como integridade exigem da Administração Pública a obrigação de conceder ao administrado a resposta constitucionalmente adequada (correta). 21. A fundamentação suficiente e adequada da solução da lide apenas estará assegurada se a Administração ou o Judiciário formularem uma resposta que esteja em coerência com o conjunto de princípios constitucionais e com a cadeia de decisões proferidas pelos tribunais superiores, em especial àquelas oriundas da Jurisdição Constitucional, porquanto a matéria nelas versadas em regra, se desatendida, poderá culminar na nulidade do próprio ato e na reforma da decisão judicial. 22. Pouco importa a diferenciação entre arbitrariedade e ilegalidade, porque da maneira como a doutrina e a jurisprudência têm enfrentado a questão, a discricionariedade, tal qual a arbitrariedade, também é uma decisão dissociada do direito, contudo, o ato discricionário pauta-se na conveniência e oportunidade do Administrador. 23. O ato administrativo que pode ter seu mérito sempre revisado pelo Judiciário quando ocorrer inconstitucionalidade ou ilegalidade é o ato que: (a) Decidir uma questão jurídica ou uma questão judicializável; (b) Solucionar, em sede administrativa, um conflito de interesses; (c) Em que for possível aferir sua constitucionalidade; (d) Aquele que atinge direito subjetivo ou interesse jurídico; (e) Pela própria força do ato torna-se obrigatória sua motivação. 24. São requisitos necessários para que seja admitida restrição a direito funda- mental: (i) a restrição deve estar fundada em uma base legal; (ii) a restrição deve ser feita em prol do interesse público ou então com o intuito de proteger outros direitos fundamentais; (iii) a limitação deve ser proporcional e (iv) o direito fundamental não pode ser totalmente aniquilado em sua essência (kerngehalt). 25. É possível importar a possibilidade de utilizar a modulação de efeitos para a decisão que poderá sindicar o mérito do ato administrativo. A decisão judicial, mediante exaustiva fundamentação, realizará o elo entre a desconstituição do ato e a cessação da eficácia do ato administrativo. Nesse contexto, três cenários podem ser vislumbrados: (i) o Judiciário realiza a cassação do ato administrativo e determina que a Administração profira outro constitucionalmente adequado; (ii) o Judiciário, além de cassar o ato administrativo, profere decisão substitutiva do ato, mediante decisão constitucionalmente obrigatória para assegurar a proteção de direitos fundamentais; (iii) o Judiciário sindica o ato administrativo, contudo, promove a modulação dos efeitos de sua decisão, nas mesmas premissas em que se faria no controle de constitucionalidade das leis.

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