Conclusão - Disponibilidade Processual

Na trilogia dos objetivos jurídicos, o Direito Processual serve ao valor segurança. E ao servir ao valor segurança, serve ao valor liberdade. Não se trata de conclusão enviesada por determinada ideologia, mas de uma irrefutável constatação de ordem lógica. Como foi exposto no Capítulo Terceiro, o Estado não precisa do processo para exercer a jurisdição. Basta investir agentes do poder jurisdicional, outorgando-lhes a prerrogativa de ‘distribuir justiça’ da maneira que considerarem mais adequada, célere e efetiva, sem nenhuma limitação formal preestabelecida. Foi exatamente essa, aliás, a proposta de processo ideal formulada por autores como Menger e Baumbach; e, em muitos aspectos, dela não se afastavam os sistemas processuais socialistas. Se uma prestação jurisdicional dessa natureza é terminantemente vedada pelo nosso ordenamento jurídico é porque se sabe, atualmente, que todo poder estatal precisa ser disciplinado: é essa a grande conquista do Estado Moderno, regido pelo ideal do Estado de Direito. Disciplina-se o exercício do poder jurisdicional mediante a criação de um método de atuação, o processo, que deve ser rigorosamente seguido pelos agentes estatais para que, além de ‘justa’, a decisão ao final proferida seja legítima. Daí falar-se em devido processo legal, que é, lembrando as atemporais lições de Couture, a “garantia da liberdade”. Partindo-se do pressuposto de que o Direito Processual é instrumento de liberdade (e negá-lo impõe rejeitar a própria ciência processual, como tão bem concluiu Calamandrei), nada justifica a supressão da autonomia privada no processo promovida pelo movimento publicista-autoritário dos séculos XIX e XX. Houve um grave desvirtuamento das finalidades do processo e, paradoxalmente, um afastamento dos princípios e valores que regem o Direito Público. O processo passou a ser confundido com a jurisdição, e de instrumento que deveria servir ao jurisdicionado, transformou-se em instrumento do Estado para o próprio Estado. É claro que, por ser a jurisdição uma atividade, uma função e um poder públicos, a liberdade processual encontra limites insuperáveis. Nenhuma liberdade é ilimitada. A autonomia privada das partes precisa compatibilizar-se com a noção de que o Estado presta algo muito próximo a um serviço público aos jurisdicionados, o qual não pode ficar refém de eventuais caprichos privados. Além disso, de forma nenhuma se pretende retornar a uma época em que o juiz permanecia inerte e pouco contribuía à efetividade do processo. Se é certo que o processo é instrumento de liberdade e de segurança, também é certo que ele não pode prejudicar a eficiência que se espera da prestação jurisdicional. Esse é um dos grandes méritos da publicização do processo, a qual, além de fomentar o desenvolvimento da ciência processual, foi determinante para que se conscientizasse que o Estado deve cumprir a sua missão jurisdicional com celeridade, qualidade e efetividade, pois é isso que esperam os seus destinatários. Por isso, apenas uma má compreensão do princípio dispositivo permite contrapor a liberdade das partes aos deveres do juiz de impulsionar o processo e garantir que o processo caminhe celeremente (sem prejuízo da segurança) rumo à sua conclusão. Impulso oficial e princípio dispositivo não apenas convivem, mas complementam-se. Também se depreende algum exagero, de ambos os lados, no intenso debate sobre os ‘poderes’ instrutórios do juiz. Menos importante do que os ‘poderes’ em si é o modo pelo qual esses ‘poderes’ são exercidos. É inadmissível, portanto, concebê-los como faculdades a serem exercidas ao livre arbítrio do julgador. Ou o juiz possui deveres-poderes instrutórios ou não possui nenhum poder. O que não se pode é supor que existem poderes judiciais exercidos facultativa e arbitrariamente. Ademais, a solução para que se profiram decisões com mais qualidade é o diálogo com as partes, e não o exercício autoritário, inesperado e não raro improdutivo de um poder estatal. Mas feitas essas ressalvas, o que se procurou demonstrar é que todo o sistema processual é estruturado, em maior ou menor medida, sobre a noção de disponibilidade. Da sua instauração até a sua conclusão o processo é essencialmente regido por um sistema de ônus que torna todos os atos das partes facultativos. Mesmo quando a causa versa sobre direitos indisponíveis, embora se restrinjam os efeitos da incontrovérsia fática, o processo continua eminentemente dispositivo. A propositura da demanda é facultativa, a contestação é facultativa, a alegação de fatos é facultativa, a produção de provas é facultativa, o comparecimento para depor é facultativo, a interposição de recursos é facultativa. Enfim, ao contrário do dever de participação que regia os processos socialistas, o nosso processo é regido pela mais ampla liberdade individual. A proposta deste trabalho foi, então, sistematizar essas hipóteses de disponibilidade processual sob a regência de um princípio dispositivo renovado e revigorado. É preciso parar de pensar o princípio dispositivo com a visão limitada de uma teoria criada no início do século XIX, em uma fase histórica na qual o processo não havia nem sequer adquirido a sua autonomia científica frente ao direito material. O princípio dispositivo não pode mais ser confundido com a prerrogativa outorgada ao jurisdicionado de romper a inércia jurisdicional e formular uma demanda. Embora essa seja a sua manifestação mais importante, não é a única. E com muito menos razão, o princípio dispositivo pode ser reduzido à mera iniciativa das partes na produção de provas. A conservação de uma doutrina já ultrapassada, que reduz o princípio dispositivo a uma ou duas manifestações processuais específicas, impede a constatação de que a inércia jurisdicional, a revelia, a confissão, a aquiescência à decisão, a desistência do recurso e as convenções processuais, entre muitos outros exemplos, possuem uma mesma base principiológica, um mesmo fundamento sobre o qual se amparar. Todas essas hipóteses decorrem da liberdade que as partes têm no processo – são atos de disposição – e precisam ser estudadas como um todo orgânico. Apenas assim será possível desenvolver uma ciência processual coesa e coerente que saiba compatibilizar liberdade, ‘justiça’ e efetividade. O publicismo-autoritário criado no século XX parece, ao menos no Brasil, ter atingido o seu ponto de saturação. É preciso, agora, recuperar o real significado da natureza pública do processo e compatibilizá-lo com a valorização da liberdade dos jurisdicionados, que é a razão de ser do Direito Processual.

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