Apresentação

Não escrevo livros para divulgar a ciência. Escrevo livros para esclarecer a mim o que é um problema. Antônio Damásio, neurocientista. 1 Resulta este livro do empenho na elaboração de conceitos, critérios e parâmetros médico-legais adequados para a análise e avaliação das consequências do dano corporal, pelas três modalidades de indenização: responsabilidade civil, seguro de acidentes do trabalho e seguros privados. Originou-se em primeiro lugar da própria necessidade do autor, em sua atuação na perícia médico-judicial e como docente, de esclarecer imprecisões, insuficiências e ambiguidades que afetam os conceitos habitualmente utilizados, gerando conflitos de entendimento e dificuldades práticas, não apenas na avaliação médico-pericial, mas também na apreciação da matéria pelos sujeitos do processo. Certamente o fato de sermos caudatários da terminologia e dos conceitos da Organização Mundial da Saúde relacionados à deficiência e à incapacidade – originalmente em inglês, adaptados para outros idiomas, muito pouco ou nada operacionais para a atuação prática – contribui em grande medida para coexistirem diferentes interpretações dos termos técnicos. A carência de conceitos operacionais se faz sentir sobretudo nas ações de indenização do dano corporal pela Responsabilidade Civil. Sentia-se também a necessidade de um sistema conceitual que pudesse ser utilizado nas três citadas modalidades de indenização. E ainda, na medida do possível, na área de apoio social e proteção às pessoas com deficiência, cujos profissionais têm reportado dificuldades similares na utilização dos conceitos da OMS. A indenização da incapacidade para o trabalho na Responsabilidade Civil ressente-se ainda da falta de um sistema para avaliação e classificação da incapacidade para o trabalho que considere não apenas a avaliação funcional, mas também fatores pessoais e do contexto de vida da pessoa. Com o intuito de suprir essa lacuna, elaborou o autor um sistema para avaliação da incapacidade para o trabalho – o Guia para Avaliação e Classificação da Incapacidade para o Trabalho (GACIT). Outra preocupação do autor foi entender as causas dos conflitos de entendimento gerados pelo termo invalidez permanente - basilar na indenização pelos seguros privados de pessoas. Por não possuir definição, as ambiguidades desse termo têm gerado nos Tribunais de Justiça julgados opondo-se às restrições impostas pelos seguros privados para a concessão da indenização por invalidez permanente total para segurados com aposentadoria por invalidez pelo INSS, situação que levou a SUSEP a excluir a cobertura de invalidez permanente total por doença, substituindo-a por novas coberturas propostas pela Circular SUSEP 302/2005. Tais alterações parecem não ter sanado completamente o problema. A análise dessa matéria permitiu equacionar alternativas conceituais que possam contribuir para a superação de tais conflitos de entendimento. Vinte e dois anos transcorreram entre a publicação do livro anterior do autor – Perícia judicial em acidentes e doenças do trabalho, em 1996 – e a edição do presente livro. Durante esse período apresentava-se a necessidade de revisar e ampliar aquele livro, em que pese a legislação básica ter mudado muito pouco desde então. Ao longo do tempo, porém, foi-se mostrando mais urgente e inevitável a necessidade de corrigir ou reformular os conceitos utilizados nesse domínio. Todavia, a percepção de que os conceitos que se faziam necessários ainda não estavam maduros não permitia fazê-lo de imediato. O conceito de funcionalidade, introduzido na Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da OMS em 2001, constituiu um marco na abordagem e avaliação da incapacidade, que, até então, limitava-se à dimensão biopsíquica, ou seja, à avaliação médica. O conceito de funcionalidade, com seus componentes relativos ao contexto de vida da pessoa, resgatou à incapacidade sua dimensão social, considerando a pessoa com deficiência em seu contexto de vida e os determinantes socioeconômicos, que podem viabilizar ou dificultar a utilização de sua funcionalidade limitada. Esse conceito tornou possível a elaboração pelo autor do sistema conceitual coerente e operacional voltado para a indenização do dano corporal – o Constructo Operacional da Funcionalidade e da Incapacidade. Viabilizando assim a aplicação dos mesmos conceitos nas três modalidades de indenização do dano corporal e seu estudo conjunto e comparativo. Essa nova abordagem colocou em evidência aspectos importantes a serem considerados na Responsabilidade Civil e nas ações de apoio e proteção às pessoas com deficiência. Outra referência fundamental para a elaboração dos conceitos e critérios para avaliação e classificação da deficiência foi o Guides to the Evaluation of Permanent Impairment, da American Medical Association (AMA-GEPI) – Guia para Avaliação do Prejuízo Funcional Permanente. Obra de fôlego, com cerca de 650 páginas, integrou em sua sexta revisão, de 2008, o conceito de funcionalidade da CIF. Em nosso meio, lamentavelmente, não se dispõe de obra equivalente que permita avaliar a deficiência de forma consistente e detalhada para servir como referência oficial, razão pela qual recomenda o autor o estudo dessa obra aos profissionais da saúde que desejem se aprofundar na avaliação médica do prejuízo funcional. Fazia-se necessário adequar conceitos (conteúdos e denominações) e critérios da CIF e do AMA-GEPI ao campo da prova pericial médica na indenização do dano corporal, transformando-os em ferramentas operacionais para a análise e avaliação da deficiência e da incapacidade; e criando novos conceitos quando necessário. Conceitos que pudessem ser aplicados nos três campos: seguro de acidentes do trabalho, seguros privados e Responsabilidade Civil; e que pudessem ser bem entendidos e manejados também pelos demais usuários: operadores do Direito e profissionais de saúde e da área social. Além da prática médico-pericial do autor por mais de três décadas, esse empreendimento requeria um campo de experimentação, no qual fosse possível conjugar a abordagem médico-pericial com os aspectos práticos processuais. Os cursos de perícia judicial para médicos do trabalho e técnicos de segurança do trabalho, ministrados pelo autor na área de Saúde do Senac-SP, durante vários anos, haviam sido o laboratório que tornou possível a elaboração do livro Perícia judicial em acidentes e doenças do trabalho, em 1996. Já para esta obra, o campo experimental foram os cursos de Perícia Judicial em Acidentes e Doenças do Trabalho na ESA-OAB (Escola Superior de Advocacia da OAB-SP), ministrados trimestralmente durante nove anos (1997 a 2005), nos quais a realização de trabalhos práticos possibilitava a análise e questionamento de conceitos e conteúdos. O autor deixa aqui registrado seu agradecimento à Profa. Dra. Ada Pellegrini Grinover (in memoriam), eminente jurista, então diretora da ESA OAB-SP, que apoiou e tornou possível essa modalidade de curso. Concorreu subsidiariamente para o amadurecimento dos conceitos e sua operacionalidade a atuação do autor, desde 2000, na perícia judicial em ações de indenização por suposto erro médico e em ações de indenização de acidentes e doenças do trabalho por Responsabilidade Civil do empregador. Acredita o autor que os conceitos operacionais expostos nos dois primeiros capítulos e nos Capítulos 5 e 6, dedicados à incapacidade para o trabalho, poderão também ser úteis a médicos e outros profissionais da área de saúde e da área social que se defrontam com questões relacionadas à deficiência e à incapacidade. Em resumo, o livro foi concebido basicamente como uma caixa de ferramentas adequadas para a indenização do dano corporal, para serem utilizadas tanto por peritos- médicos e outros profissionais da saúde como pelos operadores do Direito que requisitam prova pericial e pelos que dela se servem na instrução processual. Nesse sentido, a obra vem ao encontro das normas incorporadas à regulamentação da prova pericial no novo CPC, particularmente ao art. 473, que impõe novas obrigações para o perito, tanto com relação à metodologia da investigação pericial como na elaboração e apresentação do laudo; e ao art. 479, que estabelece para o juiz o dever de avaliar a metodologia pericial ao considerar, ou desconsiderar, as conclusões do laudo. De fato, grande parte deste livro é dedicada aos diferentes aspectos da metodologia da avaliação pericial na indenização do dano corporal em suas três diferentes modalidades. Uma análise das implicações dessas novas normas do CPC no trabalho pericial é apresentada na Introdução. A obra ora concluída, com suas qualidades e limitações, constitui, de certo modo, um ajuste de contas do autor com seu livro anterior. Os resultados desse trabalho que vêm agora à luz são submetidos à apreciação dos médicos peritos e dos operadores do direito. Com algumas importantes ressalvas. A primeira é não ter o autor formação em Direito, tendo consciência de que certamente serão encontrados equívocos ou imprecisões nas suas ingerências nesse terreno, uma vez que elas resultam apenas de algumas leituras e, sobretudo, do convívio de trabalho com advogados. Espera-se que os equívocos cometidos não comprometam o essencial da obra. Há de se estranhar que o livro, por vezes, desvia do seu escopo principal, tecendo considerações sobre alguns aspectos sociais das incapacidades. Ao apresentá-los, a intenção é fornecer aos médicos-peritos e outros profissionais de saúde e aos operadores do Direito alguns elementos que permitam melhor entender os determinantes sociais da incapacidade e ter presente a relatividade da avaliação médica da incapacidade (que denominamos a incapacidade em si), em oposição à incapacidade no contexto de vida. É importante que tais aspectos possam ser incorporados, na medida do possível, à avaliação médica das incapacidades, sobretudo na indenização do dano corporal pela Responsabilidade Civil. Outra ressalva diz respeito ao duplo público-alvo do livro – médicos que atuam na perícia médica judicial e operadores do Direito. A investigação médico-pericial no processo judicial é afetada não apenas pelo contraditório da contenda entre as partes, método estranho à prática médica, como também pelas contradições entre os saberes e lógicas da Medicina e do Direito. Se nas ações judiciais a verdade processual é aquela que emerge dos fatos que as partes conseguem trazer ao processo, na investigação clínica a verdade buscada é aquela que permite prevenir ou diagnosticar e tratar eficazmente o paciente. Além disso, tornar o texto compreensível para ambos acarreta certo desconforto: aquilo que se apresenta como novo conhecimento para profissionais de uma área certamente é algo bem conhecido para profissionais da outra área. Espera o autor que boa parcela de novos conhecimentos e informações para ambos os profissionais compense essa inevitável contingência. A última, porém mais relevante, ressalva: encara o autor o livro ora publicado como um processo em construção, pois, pela sua própria natureza, poderá conter imprecisões e aspectos pouco desenvolvidos, em que pese seu empenho e as muitas revisões para apresentar a melhor versão possível. De sorte que se pode considerar este livro uma versão beta, analogamente ao aplicativo de informática que foi desenvolvido e é disponibilizado a usuários para que o testem na prática, reportem defeitos e proponham melhorias e aperfeiçoamentos. Por tal razão, no Capítulo 1, ao se relacionarem os critérios para a formulação dos conceitos operacionais propostos, o último item estabelece: Os conceitos devem estar abertos a aperfeiçoamentos, ajustes e correções, advindos da prática de seus usuários - o que pode ser feito através da página www.primobrandimiller.com.br, postando comentários, sugestões, críticas e dúvidas relativos ao conteúdo do livro. Tal participação tornará este livro, ao mesmo tempo, ponto de chegada e ponto de partida. Antônio Damásio, neurocientista. Entrevista, Folha de S.Paulo, 28.06.2013.

Conceitos Médico-Legais para Indenização do Dano Corporal - Ed. 2018

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