A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E O DESAFIO DA DOUTRINA JURÍDICA

A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E O DESAFIO DA DOUTRINA JURÍDICAApós muito tempo de defasagem, o Brasil aprovou sua Lei Geral de Proteção de Dados. Essa legislação tem relevância para toda e qualquer empresas ou organização que trabalhe com atividades relacionadas a dados (tais como coleta, armazenamento, tratamento ou processamento). Em outras palavras, a lei se aplica a toda e qualquer entidade. Isso porque no mundo em que vivemos hoje, todas as empresas ou organizações, grandes ou pequenas, acabarão de alguma maneira por trabalhar com dados. Mesmo um pequeno varejo no centro de uma grande ou pequena cidade, de algum modo, irá usar dados na relação com os clientes ou para melhor compreender seu potencial de crescimento. Com isso, o impacto da Lei Geral de Proteçâo de Dados Pessoais poderá ser tão abrangente quanto o impacto da aprovação do Código de Defesa do Consumidor. Ou ainda, da Lei dos Crimes Ambientais. Ou mais recentemente, do Marco Civil da Internet. Todas essas legislações têm algo em comum: elas transformam práticas e definem regras do jogo para o ambiente de negócios do país. Vale também enfatizar que a Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira é fortemente inspirada pelo modelo europeu de proteção de dados. Nesse sentido, a Europa vem se tornando uma espécie de superpotência regulatória. Modelos de regulamentação desenhados no continente europeu vem sendo disseminados ao redor do mundo com relação aos mais diversos temas: direito concorrencial, regulação da internet e, sobretudo, proteção de dados. Nesse contexto, há pontos convergentes da legislação brasileiras com a europeia, mas há também pontos divergentes. No momento da sua aprovação foram vetados os artigos que criavam no país uma autoridade nacional de proteção de dados. Esse veto gerou uma incompletude. O modelo europeu possui como elemento central e fundamental a atuação dessa autoridade como órgão de interpretação, fiscalização e aplicação da lei. O modelo brasileiro também previu a mesma coisa. Tanto é que o termo “autoridade nacional” aparece 49 vezes ao longo da Lei Geral de Proteção de Dados. No entanto, no momento em que este livro é escrito, essa autoridade não existe. Isso trará enormes desafios para a intepretação da lei, o que só aumenta o desafio e a importância dos doutrinadores. Um desses desafios é que a autoridade nacional de proteção de dados tem dentre suas funções justamente normalizar a interpretação da lei. Nesse sentido, desempenha uma tarefa essencial de orientar todos os agentes da sociedade sobre quais os limites e vicissitudes do texto legal. Essa tarefa é essencial. A lei é eivada de conceitos que são claramente indeterminados. Por exemplo, o conceito de “legítimo interesse”. Ele está presente no texto legal, mas sua interpretação – sem uma autoridade nacional – é aberta e difícil de ser circunscrita. É nesse contexto que a tarefa do doutrinado tornou-se especialmente importante no Brasil. É também por essa razão que parabenizo Márcio Cots e todos aqueles que contribuem para o presente livro, analisando cada um dos artigos da lei, buscando justamente tornar o que é indeterminado em determinado. Essa tarefa, como visto, é especialmente importante porque na ausência da autoridade nacional, a interpretação da lei será feita por cada um dos mais de 17 mil juízes de primeira instância do país. Esses juízes serão chamados a decidir sobre uma legislação complexa e altamente especializada. Mais do que isso, trata-se de lei que impõe penas significativas, tal como 50 milhões de reais por infração ou 2% do faturamento da pessoa jurídica infringente no seu último exercício. Isso demonstra o tamanho da responsabilidade interpretativa da lei. E a relevância do papel do doutrinado como o primeiro que irá se debruçar sobre seu texto, como forma de abrir caminho para uma interpretação racional. Ao meu ver, a chave para essa interpretação é também verificar a experiência internacional. Como dito, o modelo da lei brasileira deriva-se em grande medida do modelo europeu. Com isso, ao doutrinado brasileiro cabe também verificar como os dispositivos da nossa legislação vêm sendo interpretados originariamente no continente europeu. Uma das razões é o acúmulo de decisões e boas práticas que vêm sendo construídas desde a implementação da Diretiva 95/46/EC. Essa aplicações e interpretações podem e devem servir de parâmetro argumentativo para a formulação da interpretação brasileira sobre a lei. É claro que nenhum país deve se subordinar a outro, especialmente com relação a aplicação de suas próprias leis. No entanto, sem o filtro normalizados de uma autoridade nacional de proteção de dados, o doutrinador brasileiro terá o trabalho e responsabilidade ainda maior de compreender como as leis de privacidade vêm sendo recebidas, aplicadas, interpretadas e ajustadas de acordo com os contextos locais. Até porque os níveis de desenvolvimento e as peculiaridades de cada país são distintos. Por essa razão, muito me orgulha a oportunidade de escrever o prefácio deste que é, sem dúvida, se não o primeiro, um dos primeiros esforços doutrinários que se debruçam na intepretação da Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira. Esse esforço inaugural tem grande valor. Todos os aplicadores e operadores da lei serão diretamente beneficiários das inúmeras horas e da dedicação que foi empregada na formulação do presente livro. Escrevi em outra oportunidade que a Lei Geral de Proteção de Dados inaugura uma “nova era” com relação à proteção da privacidade no Brasil. Acredito que essa mesma lei inaugura também um novo capítulo para os estudos sobre privacidade no país. Estamos vendo surgir toda uma nova geração de juristas e advogados que, por causa da nova lei, estão se debruçando sobre o tema da privacidade, que antes era reservado a poucos profissionais da área do direito. Que sejam todos bem-vindos. Afinal de contas, o direito à privacidade é cláusula pétrea da nossa Constituição. Um direito-princípio que está em permanente mutação, especialmente porque se transforma em compasso recíproco com as transformações tecnológicas. Todas as vezes que tecnologia muda, a interpretação e aplicação do direito à privacidade acaba por se modificar também. É antecipando essas mudanças e vislumbrando-as do ponto de vista da prática – para a resolução de problemas concretos – que este livro está sendo publicado. Fico honrado de poder fazer parte desse esforço e de ver nascer esse novo momento para os aspectos jurídicos relacionados à proteção de dados e à privacidade em nosso país. 31 de agosto de 2018 RONALDO LEMOS Professor da Cadeira de Direito da Informática da UERJ Professor Visitante da Universidade de Columbia (NY) Advogado, Sócio do PNM Advogados Fundador e Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

A Lei Geral de Proteção de Dados e o Desafio da Doutrina Jurídica

A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E O DESAFIO DA DOUTRINA JURÍDICA

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