Apresentação - Lgpd na Saúde

Obras coletivas são sempre desafiadoras. Coordenar assuntos, prazos, sobreposições eventuais de temas, lacunas deixadas pelas abordagens empreendidas é tarefa que se mostra bastante delicada. Mas os resultados são invariavelmente exitosos. Visões contrapostas, investidas originais, riqueza na exposição de detalhes. A área da Saúde e os desafios que ela gera para o Direito já há muito estava merecendo atenção, sobretudo ante as dúvidas que a entrada em vigor, em 15 de agosto de 2020, da Lei Geral de Proteção de Dados ( LGPD), Lei nº 13.709/2018, despertou e continua a despertar. O longo – e pouco usual – hiato entre sua promulgação e a entrada efetiva da lei em vigor visaram dotar agentes econômicos e sociais, públicos e privados, do tempo necessário para colocar em evidência e execução programas eficazes e boas práticas aptas a resguardar e proteger os dados pessoais pertencentes aos cidadãos e que tenham sido ou venham a ser legitimamente coletados em operações as mais variadas, sejam estas de cunho econômico ou não. Dados de saúde representam a extensão da personalidade do indivíduo, extremamente importantes na privacidade, na construção de sua identidade, além de se mostrarem fundamentais para a fruição de certos direitos de cidadania. Nesse sentido, tanto o tratamento irregular como o incidente de segurança sobre dados de saúde podem acarretar danos incalculáveis para o paciente titular de dados, patrimoniais ou morais, por conta do conteúdo sensível e do potencial altamente discriminatório e preconceituoso que o uso indevido destes dados pode representar. Contratos de seguro, de assistência médica e de trabalho, por exemplo, podem ser afetados em sua estruturação jurídica, em seus elementos econômico-negociais e mesmo em seu estabelecimento ou ruptura precoces por dados que vinham sendo coletados de modo indiscriminado em drogarias, laboratórios clínicos, centros médicos e hospitais, por exemplo. E tal uso, no mais das vezes, ocorria sem que o titular dos dados fosse adequadamente informado de seu potencial uso nessa ou naquela seara. Daí a relevância de que todas as atividades de tratamento de dados pessoais observem os princípios da boa-fé, finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade, transparência, segurança, prevenção, não discriminação, como determina o artigo 6º da LGPD. A lei separa o conceito de dados pessoais, entendidos como toda informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável, do conceito de dados pessoais sensíveis, caracterizados como aqueles em que sobressaem informações sobre a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dados referentes à saúde ou à vida sexual, dados genéticos ou biométricos, todos vinculados a uma pessoa natural. No complexo ecossistema de saúde, dados pessoais e sensíveis trafegam e precisam trafegar de modo a garantir a melhor assistência do paciente titular de dados. Exames de sangue e imagem realizados em um certo laboratório podem ser acessados pelo médico ou pela equipe assistencial de um hospital para impedir a repetição considerada tecnicamente desnecessária dos mesmos exames, tudo a depender dos protocolos clínicos que recomendem ou não novas testagens. Dados de saúde do paciente segurado podem ser acessados até mesmo pelo plano de saúde, desde que de forma segura e sigilosa, seja para analisar a liberação de um reembolso, para autorizar um pagamento, ou até mesmo, para evitar a exposição desnecessária à radiação, com a realização repetitiva de exames como PET-Scan que prejudicam a saúde do paciente titular de dados, sem que, para isso, seja necessário coletar seu consentimento inequívoco. Não obstante, quem acessa tais dados deve protegê-los e garantir o uso adequado das informações que deles defluam. Ademais, a LGPD evidencia que a exceção somente poderá ser admitida em situações em que a tutela da saúde, a proteção da vida ou a proteção da incolumidade física do titular ou de terceiro estejam em xeque. Isto é, a exceção só se admite para tratamentos de saúde que beneficiem os pacientes titulares dos dados acessados, sendo expressamente vedada a prática da seleção de riscos, como a negação de acesso a seguros médicos, aumento do valor de planos de saúde e à saúde, de maneira geral. Isso significa que o tráfego de dados de saúde com a dispensa do consentimento é a exceção, e não a regra. É autorizado quando for indispensável para observar: (i) o cumprimento de obrigação legal ou regulatória; (ii) a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais sensíveis; (iii) a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro; (iv) a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária. Também é dispensado quando se tratar de obtenção de vantagem econômica, nas hipóteses relativas à prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, e para permitir as transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da prestação desses serviços, desde que em benefício do paciente titular de dados. Fica assim proibida a prática da seleção de riscos por parte do agente de tratamento. O levantamento destas questões coloca em evidência uma série de dúvidas que um seleto grupo de autores – que vêm se dedicando ao estudo sistemático da proteção de dados e/ou à área da saúde – aborda em 24 densos capítulos, divididos em 3 partes tematicamente organizadas. Na primeira parte da obra, procurou-se proceder à “contextualização da proteção de dados de saúde: perspectiva internacional e legislativa”, com dois importantes capítulos que abordam o modelo europeu e o modelo estadunidense, tão diversos entre si em alguns pontos, e que lançam luzes para auxiliar a interpretação que o caso particular dos dados pessoais na área da saúde acarreta. Nesta parte, as contribuições vêm assinadas por renomadas e renomados colegas das Universidades de Coimbra, em Portugal, as professoras Dulce Lopes e Carla Barbosa, e da Yale University, nos Estados Unidos da América, a professora Bonnie Kaplan e o pesquisador Artur Péricles Lima Monteiro. Na segunda parte, intitulada “Tratamento de dados de saúde na LGPD: obrigações, limites e responsabilidade dos agentes”, o olhar dos autores convidados a colaborar para a presente obra volta-se para o cenário das relações nacionais e, em 12 capítulos detalhados, analisam importantes aspectos da proteção de dados na área da saúde: Tratamento e transferência de dados de saúde: limites ao compartilhamento de dados sensíveis é o tema sobre o qual discorre José Augusto Fontoura Costa, da FD-USP. Conservação, anonimização e eliminação de dados na área de saúde: obrigação legal e regulatória, viabilidade técnica e observância da LGPD constituem a abordagem de Angela Fan Chi Kung e Nicole Recchi Aun, advogadas atuantes na área da saúde, a proteção e compartilhamento de dados entre profissionais e estabelecimentos de saúde é o tema abordado pelas advogadas Analluza Bolivar Dallari e Amanda C. M. Smith Martins. A segurança da informação na saúde e os requisitos para coleta e tratamento de dados na área da saúde são trabalhados no capítulo da lavra de Lilian Cristina Pricola e Vladimir Ribeiro Pinto Pizzo, responsáveis pela área de segurança da informação de um grande hospital de São Paulo. Por sua vez, Juliana Pereira de Souza-Zinader, Thais Lucena de Oliveira, Gabriella Nunes Neves, Jackeline Neves de Almeida e Jacson Venancio de Barros constituem importante time de autores que discorrem sobre a rede nacional de dados em saúde e a proteção de dados pessoais, com a experiência de quem trabalha ou trabalhou em agências e órgãos públicos nacionais. Walquiria Favero, com a experiência de quem gerencia aspectos jurídicos, de compliance e de privacidade de um grande conglomerado privado da área da saúde, traz o olhar do sistema de saúde suplementar sobre diversas possibilidades de compartilhamento de dados a depender da qualidade dos agentes envolvidos em tais transações. Os aspectos contratuais da saúde na LGPD, a proteção de dados e os contratos eletrônicos são abordados pelo advogado Antônio Alberto Rondina Cury, ao passo que o Professor Eduardo Tomasevicius Filho (FD-USP) lança um olhar para o campo da responsabilidade civil na área da saúde à luz da LGPD. As Regras de boas práticas e de governança são abordadas pelos advogados Rafael Goto Foja e Aline de Almada Messias, a partir de sua experiência profissional no âmbito hospitalar, ao passo que Fabio Rivelli e Ricardo Freitas refletem sobre a proteção da privacidade na área da saúde desde a concepção (e por padrão), utilizando-se dos conceitos de Privacy by design e Privacy by Default. A advogada Raquel Botelho Santoro enfrenta a LGPD como ferramenta de compliance na área da saúde e aborda tanto a política de privacidade, quanto o relatório de impacto à proteção de dados pessoais. Para encerrar essa parte da obra, a pesquisadora Maria Cecilia Gomes indaga se o relatório de impacto à proteção de dados é obrigatório para o tratamento de dados sensíveis. A terceira parte da obra procura abordar, em 10 capítulos, os desafios causados e as perspectivas abertas pela entrada em vigor da LGPD na área da saúde. A Professora Helena Rinaldi Rosa (Instituto de Psicologia da USP) e as psicólogas Marlene Alves da Silva, Eliete Villas Boas e Hilda Rosa Capelão Avoglia abordam os prós e os contras criados pela LGPD relativamente aos bancos de dados de saúde e sua utilização para pesquisa. A advogada Renata Rothbarth, atenta à transição do modelo de saúde tradicional para um modelo de saúde digital, contribui com a discussão acerca da monetização de dados de saúde à luz da LGPD. O advogado Felipe Palhares, por sua vez, analisa o potencial de vantagem econômica e suas consequências e limitações no compartilhamento de dados de saúde. Dando-se seguimento aos avanços que a tecnologia proporciona para a modelagem de um sistema de saúde digital, a advogada Analluza B. Dallari analisa a proteção de dados na telemedicina, traçando sua conjuntura jurídica e os limites decorrentes da ética médica. Os sistemas de prontuário eletrônico e a prática da digitalização são analisados por Luiz Gustavo Gasparini Kiatake, Presidente da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. As startups de saúde são abordadas pelos advogados Teresa Gutierrez, Lucas Magalhães e Lucas Bonafé, que analisam os aspectos específicos da responsabilidade pelo tratamento e proteção de dados sensíveis. Já o Professor Juliano Souza de Albuquerque Maranhão (FD-USP) e o advogado e cientista da computação Marco Almada enfrentam as questões relativas ao uso da inteligência artificial no setor da saúde pelo viés da ética e da proteção de dados. O advogado Solano de Camargo aborda, pelo viés do Direito Internacional, como os ataques cibernéticos se tornaram comuns durante a pandemia da Covid-19, além de verificar as consequências jurídicas de tais ações e as dificuldades que geram para o direito. As situações excepcionais criadas por um cenário de pandemia mereceram, ainda, a atenção dos pesquisadores Rafael Zanatta, Márcia Araújo Sabino de Freitas, Iasmine Favaro e Renato Leite Monteiro. Por fim, a advogada Amanda Cunha e Mello Smith Martins aborda o direito ao esquecimento de dados de saúde. Relativamente a Amanda Cunha e Mello Smith Martins, cabe deixar consignado o mais profundo agradecimento dos coordenadores da obra por sua atuação precisa e incansável na organização dos capítulos, na comunicação com os autores e por ter se engajado de corpo e alma neste projeto. Nossa intenção – que é também a de Amanda – foi oferecer seletas opiniões técnicas de renomados autores com experiência prática na área da saúde. Espera-se, com isso, que esta obra sirva como apoio para a interpretação da LGPD, área com tantas nuances em que sigilo, privacidade e segurança da informação são princípios desde antes consagrados. Não apenas em benefício da própria Autoridade Nacional de Proteção de Dados, em sua missão de regulamentar a Lei e traçar diretrizes para sua interpretação, mas para auxiliar o público leitor que estuda e trabalha com a aplicação da LGPD na área da saúde, em que dados pessoais e dados pessoais sensíveis trafegam e precisam trafegar, desde que em benefício do paciente titular de dados e para a continuidade de sua assistência. Sobretudo porque as pesquisas e a inovação que podem beneficiar a saúde pública em geral dependem do correto tratamento desses dados. São Paulo, dezembro de 2020. Analluza Bolivar Dallari e Gustavo Ferraz de Campos Monaco Coordenadores da obra Assista agora aos comentários de Gustavo Ferraz de Campos Monaco para esta apresentação Assista agora aos comentários de Analluza Bolivar Dallari para esta apresentação

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