Prefácio à 1.ª Edição

O ciberespaço, e, em seu âmbito, a Internet, constituem-se em eloquente exemplo da revolução tecnológica que, nos últimos anos, abalou os alicerces do direito privado, impondo revisão de toda a dogmática secularmente sedimentada. A autonomia privada se defronta com alterações em seus aspectos objetivo, subjetivo e formal. Do ponto de vista objetivo, novos bens jurídicos, antes sequer cogitados pelos juristas, tornam-se centros de interesse importantíssimos. Basta pensar nos dados pessoais, patrimoniais e existenciais que circulam pela Internet a cada momento, com ou sem finalidade comercial, deslocando de maneira quase infinita informações personalíssimas atinentes aos usuários ou mesmo de terceiros, que sequer contratam serviços e se veem atingidos em suas esferas moral e patrimonial. Sob o aspecto subjetivo, novos centros de interesses individuais, coletivos e difusos devem ser tutelados, alcançados pelas atividades desenvolvidas na Internet. Ao mesmo tempo, surpreende cada vez mais o inusitado potencial lesivo da informática, que produz extraordinária gama de eventos, sempre mais mutantes e multifacetados, danosos à pessoa humana, especialmente no que tange à sua intimidade. Finalmente, sob a perspectiva da forma, todo o vetusto aparato registral construído ao longo dos séculos em favor da segurança patrimonial mostra-se inadequado às peculiaridades da atuação no ciberespaço, que requer meios de autenticação formal inteiramente novos, com vistas não somente à proteção do patrimônio, mas à tutela de valores existenciais, a começar pela identidade pessoal, e que atinge inevitavelmente a intimidade, a honra, a privacidade e o direito à informação. Esse cenário de transformação torna-se ainda mais complexo quando se tem em mente os negócios celebrados pela Internet, já que, neste caso, todos os fundamentos da teoria contratual são desafiados a darem resposta às demandas de segurança indispensáveis ao sucesso das transações. Estas, em volume gigantesco, mobilizam usuários em todo o mundo, exigindo a definição urgente da normativa aplicável para a proteção de quem contrata serviços ou adquire produtos no ciberespaço. Tal a tarefa a que se dedica, com brilhantismo, o professor Guilherme Magalhães Martins nesta obra agora apresentada ao público. O livro oferece critérios coerentes para a definição da disciplina jurídica aplicável à responsabilidade civil por acidentes de consumo na Internet. O autor destaca a singular vulnerabilidade do usuário, combalido pela impossibilidade de dominar o emaranhado técnico em que se vê submerso, associada ao idioma e a usos contratuais alienígenas, bem como à nem sempre fácil identificação do local da contratação e da lei aplicável. Na esteira de tal premissa, Guilherme Martins define os negócios celebrados na rede aberta como contratos de consumo, procedendo, então, à compatibilização e à harmonização da legislação incidente. Com este propósito, a obra de Guilherme Martins afigura-se extremamente informativa, servindo como fonte de consulta, para advogados e profissionais das diversas carreiras jurídicas, na medida em que passam em revista as novas hipóteses de incidência normativa – pela primeira vez analisadas, do ponto de vista jurídico, na experiência brasileira. A partir daí, o autor procura identificar as ferramentas jurídicas, oferecidas pela Constituição, pelo Código de Defesa do Consumidor, pelo Código Civil e diversas leis especiais, nacionais e supranacionais, para a tutela do consumidor. Põe em evidência a particularíssima relevância do dever de informação nesse tipo de contrato, individuando os vícios de segurança aos quais se pode imputar os acidentes de consumo neste hermético cenário da rede aberta – sendo consentido o oximoro. O leitor se deparará, então, com o rico e sedutor novelo de hipóteses, como o pharming – definido como “tipo de golpe que redireciona os programas de navegação (browsers dos usuários para sites falsos)”; a invasão do site ou rede por crackers; o spam e o pishing spam, aqui considerado como publicidade abusiva; e os cookies. O livro qualifica juridicamente estas categorias e muitas outras, submetendo-as ao crivo dos instrumentos oferecidos pelo sistema. Descortina-se, com isso, a instigante proposta do autor quanto às hipóteses de reparação no direito civil brasileiro. O livro discute, em cada caso, os pressupostos do dever de indenizar, à luz dos elementos da responsabilidade civil – atividade, dano e nexo causal –, das excludentes admitidas pelo sistema, e dos princípios fundamentais na legalidade constitucional. Por outro lado, ao longo do trabalho, Guilherme Martins aparta os danos ressarcíveis daqueles que não deflagram o dever de reparar, fixando critérios para a distinção, a ser levada a cabo pelo intérprete, no caso concreto, com fundamento da ponderação dos interesses em jogo. Neste particular, o livro extrapola os objetivos propostos, constituindo-se, assim, em formidável subsídio não somente para o tema especificamente tratado, mas também para a formulação de uma nova dogmática da responsabilidade civil. Petrópolis, 23 de setembro de 2007. Gustavo Tepedino Professor titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

Responsabilidade Civil por Acidente de Consumo na Internet - Ed. 2020

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