Introdução - Planos de Saúde

Dez anos após a promulgação da Constituição Federal e oito da edição do Código de Defesa do Consumidor, foi publicada a Lei 9.656, de 03.06.1998, após sucessivas alterações resultou na MP 2.177-44, de 24.08.2001, destinada a regular o mercado de saúde suplementar e trazer uma nova disciplina jurídica para os planos privados de assistência à saúde. A Constituição, ao tempo em que assegurou ser a saúde direito de todos e responsabilidade do Estado, também autorizou a atuação da iniciativa privada na prestação de serviços de assistência à saúde. Assim é que, em se tratando de atividade de natureza econômica, os serviços privados de assistência à saúde estão submissos aos primados da dignidade da pessoa humana, da livre concorrência e da defesa do consumidor. E mais do que tudo, o serviço que se opera neste mercado afeta um bem constitucionalmente indisponível: a vida, a qual só pode caminhar pelos trilhos da saúde. É, pois, pela relevância pública das ações e serviços de saúde que se justifica a regulação estatal sobre o mercado de saúde suplementar, como prevê a própria Constituição. Com o objetivo de regular o setor de saúde suplementar, a Lei 9.656/98 não se limita a ditar regras econômicas de entrada e permanência no mercado; cuida também da proteção contratual ao consumidor nesse segmento. Vale dizer que, antes de uma intervenção mais efetiva do Estado, as relações de consumo, na prática do dia a dia, pautavam-se no livre jogo de conveniências das operadoras, sendo uma constante a procura, em ações isoladas, ao Judiciário e aos órgãos de defesa do consumidor para que a sociedade visse valer seus direitos. Cada segmento do mercado seguia um conjunto de diretrizes básicas, mas só algumas eram comuns às diversas operadoras. Naquele momento, proliferavam cláusulas abusivas de toda a espécie, em particular aquelas que excluíam tratamentos que exigissem custos elevados ou, quando não, impingia-se a limitação das coberturas assistenciais nos procedimentos de alta complexidade. Eram comuns cláusulas ininteligíveis, vagas, incompreensíveis, obscuras, de modo a não deixar claras as regras de cobertura assistencial, muito embora a publicidade divulgada pelas operadoras desse a dimensão de uma integralidade do atendimento médico-hospitalar. Cada contrato tinha uma característica específica, mas, a prática comum era o predomínio da exclusão de tecnologias de alto custo. Diante desse cenário, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, criada, pela Lei 9.961/2000, para regular e fiscalizar o mercado operador de planos privados de assistência à saúde, assumiu posição estratégica no âmbito das políticas de saúde, pela construção do equilíbrio entre operadoras, consumidores e prestadores de serviço, no ideal de um mercado estável, eficiente e socialmente justo. A regulação, porém, é um trabalho contínuo. Ela não se extingue no marco legal e na lei de criação do ente regulador. Certo é que a condução desse processo deve se dar de forma segura, coerente, progressiva e transparente, de modo que muitos desafios ainda hão de ser enfrentados, principalmente quando está em jogo um intrincado conflito de valores antagônicos, em que, de um lado, está a operação econômica, cujo equilíbrio deve ser preservado como meio de assegurar a utilidade da prestação da assistência à saúde contratualmente prometida e, de outro, está o interesse material do consumidor na preservação da sua saúde. É nesse contexto que se desenvolve o presente estudo, o qual se dedica a examinar e descrever o surgimento e os impactos da Lei 9.656/98 e de sua regulamentação sobre o sistema jurídico que envolve o direito do consumidor, em particular os aspectos relativos à proteção contratual, sem, contudo, ter a pretensão de traçar uma abordagem em toda sua amplitude e complexidade, que, decerto, é merecedora de infindáveis e calorosos debates. O tema escolhido parte da experiência profissional da autora, em particular nos seis anos de atuação no Procon de São Paulo, onde os assuntos mais reclamados diziam respeito a planos de saúde. Diante disso, tornou-se a autora representante do Órgão nas discussões sobre a normatização do setor no Congresso Nacional e, depois, na Câmara de Saúde Suplementar. E, quando da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, foi convidada para ser Diretora. 1 A presente obra faz uma análise sobre a legislação na forma como se encontra em vigor, sendo importante salientar que o tema desenvolvido é recente na literatura jurídica, pois tímida ainda é a produção acadêmica sobre essa matéria, pelo que o trabalho foi basicamente realizado e consultado em pesquisa bibliográfica nacional. O objetivo deste estudo foi verificar o grau de proteção ao consumidor de planos privados de assistência à saúde, segundo a norma vigente, tendo sido desenvolvido em três etapas, divididas em oito Capítulos. Na primeira parte do trabalho, desenvolvida nos três primeiros capítulos, busca-se situar a participação dos serviços privados de saúde, em especial, os serviços de cobertura assistencial, inserido na estrutura do sistema de saúde brasileiro. Visto isso, passa-se ao enfoque do processo de normatização da Saúde Suplementar. Para tanto, são tecidas considerações sobre a opção governamental pela Reforma do Aparelho do Estado e a inserção das Agências Reguladoras no Brasil, a fim de se demonstrar o papel que lhes cabe na defesa do consumidor, eis que se trata de condição obrigatória na regulação da atividade econômica. Confere-se especial destaque à ANS, como elemento de grande importância no processo regulatório do mercado de saúde suplementar. Cabe esclarecer, nesse passo, que se optou por adotar a expressão “normatização”, com uma acepção mais ampla, para tratar do marco legal composto por todo o sistema normativo que envolve o setor, a começar pelas leis emanadas do Poder Legislativo e pelas Medidas Provisórias, por terem estas força de lei. De outra parte, o termo “regulamentação” foi utilizado, em particular, para as normas editadas por órgãos e entidades da Administração Pública competentes para regulamentar a lei, como, a exemplo, são as normas do Conselho de Saúde Suplementar – CONSU, do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e a da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Em um segundo momento, este estudo versa sobre a evolução dos direitos do consumidor no plano internacional e no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor e a principiologia por ele traçada, dando-se especial atenção aos aspectos que envolvem a proteção contratual. Fixado esse panorama, passa-se ao exame das características dos contratos de consumo, abordando-se a evolução da concepção dos contratos na teoria clássica e na contemporânea, para, a partir daí, analisar a natureza dos contratos de planos privados de assistência à saúde, situando-os na órbita das relações de consumo. A terceira e última parte deste estudo, que abrange os três últimos Capítulos, destina-se a analisar a Lei 9.656/98 e sua regulamentação, verificando suas inovações na ordem jurídica, avanços e incompatibilidades com o microssistema jurídico que rege o mercado de consumo, isto é, o Código de Defesa do Consumidor. Pontua-se a relação entre o Código de Defesa do Consumidor e a legislação especial sobre os planos privados de assistência à saúde, avaliando a existência de antinomias entre as normas, bem como os efeitos da aplicação da lei especial para os direitos dos consumidores, na seara dos contratos de planos privados de assistência à saúde, com base na doutrina e jurisprudência colacionada. Cabe salientar que o título do livro “Planos de Saúde” trata sobre os planos privados de assistência à saúde, englobando nesta terminologia, tanto os planos de saúde como os seguros-saúde. Maria Stella Gregori foi Diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, de dezembro de 1999 a dezembro de 2005, responsável pela Diretoria de Fiscalização.

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