PREFÁCIO

PREFÁCIO A democratização da Administração Pública brasileira e suas técnicas de viabilização têm sido objeto de frequentes estudos. Muitos deles acríticos e outros tantos, ingenuamente idealistas. E isso se estende aos que investigam os mecanismos de democratização orgânica (ou institucional) e não orgânica (ou processuais). É sob essa perspectiva que a audiência e a consulta públicas, ferramentas de participação processual consagradas na LPA federal, geralmente acabam sendo fantasiadas como antídoto definitivo a todos os males de que padece o modelo clássico de democracia representativa. Como contraponto a tal visão, desponta a ampla, densa e lúcida dissertação de Eduardo Fortunato Bim, procurador federal, professor de Direito Administrativo e autor de reconhecida produção científica na área. Trata-se de estudo solidamente baseado em farta doutrina e jurisprudência, permeado, ademais, por incontáveis referências às mais diversas ordens de fontes do direito positivo nacional e do direito estrangeiro. Trata-se, certamente, de uma das mais relevantes obras sobre audiências públicas da doutrina pátria. Inúmeros fatores justificam essa asserção. A uma, ela contém uma reflexão verdadeira e corajosa acerca do tema. Afirmar o papel da Administração como tutora de interesses públicos primários não significa aceitar a arbitrariedade. A gestão e o gestor públicos, hoje mais do que nunca, inevitavelmente se submetem a incontáveis regras e princípios que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos e impedem abusos ou atuações ilegítimas. A duas, o trabalho se revela bastante abrangente, pois aborda tanto a teoria geral das audiências públicas, quanto as audiências em espécie. Isso inclui, entre outras coisas, o exame das audiências nos vários setores regulados, no Direito Ambiental, no Urbanístico e nas contratações públicas. A teorização geral e a análise crítica das espécies não prescindem, contudo, de uma contextualização prévia. A partir do debate acerca dos mecanismos de par ticipação como ferramenta de cidadania, Bim revela a diferença entre mecanismos de democracia participativa e democracia direta. Destaca, ainda, a infungibilidade dos mecanismos de representação e de participação. Tal posicionamento revela-se bem acertado. Afinal, se é verdade que as formas de participação hoje em voga trazem muitos benefícios à gestão pública, de outro lado, não há como se negar que sua estrutura e funcionamento revelam vícios e problemas. Dentre eles mere cem destaque: (a) os custos financeiros de participação; (b) os custos técnicos de participação; (c) o risco de captura do agente público por fortes grupos políticos, sociais ou econômicos; (d) a tensão existente entre os interesses manifestados em audiência e os interesses do povo expressos em lei e (e) o risco de uso simbólico da participação pelo administrador público. Exatamente por isso, é ilusivo acreditar que o modelo representativo será substituído pelos novos mecanismos. O que ocorrerá é a complementação dos modelos, a somatória de seus benefícios. Além da necessária contextualização do instituto, Bim se propõe a investigar os fundamentos e as finalidades da audiência pública. E aqui destaca a inaptidão de se pensar no princípio da ampla defesa e do contraditório, bem como da publicidade como razões ou explicações do fenômeno, embora no caso da publicidade existam audiências públicas exclusivamente para tais fins. Agrega a tal visão a relevância das audiências como mecanismos importantes à concretização da eficiência administrativa em matéria processual. Eficiência, aqui, deve ser entendida não apenas como economicidade ou racionalidade procedimental, mas como a necessidade de se elaborar decisões tecnicamente bem instruídas, aderentes à realidade e capazes de produzir efeitos reais. De nada adiantam processos céleres e econômicos, cujas decisões sejam inaptas a produzir os efeitos esperados pelo Estado na execução de políticas públicas. Diante disso, a audiência não configura um mecanismo de promoção da comunicação e transferência de informações que opera somente no sentido Estado sociedade. O processo inverso existe e detém utilidade clara. A relação das audiências com a qualidade do processo decisório estatal é inegável. Não por outro motivo, adiciona Bim a influência positiva das audiências à legitimidade do Estado, uma vez que decisões mais bem fundamentadas gozam de mais chances de serem aceitas e, portanto, efetivas no contexto em que se inserem. Uma ressalva é, porém, inevitável. Diferentemente de muitos, Bim cautelosamente não enxerga as vantagens da audiência como necessárias. Muitas delas são eventuais, dependentes da relação entre o Estado e a sociedade no caso concreto. Assim como podem promover o consenso, há casos em que os mecanismos de interação participativa são capazes de gerar dissenso ou, como destaca o autor, de promover a escalada de conflitos. Tal posicionamento permite que se faça uma importante distinção entre dois fenômenos. Não se pode confundir a consensualização da gestão pública, de um lado, com a participação e democratização, de outro. Embora a participação viabilize consensos, este não é seu resultado natural. Outro argumento a negar a relação entre os movimentos de consensualização e participação diz respeito à própria finalidade da audiência. Com efeito, Bim sustenta ser impróprio falar de “resultados de audiência pública”, já que seu fim é promover a troca de informações, sugestões, opiniões e comentários em benefício da maturação do processo decisório. A audiência, portanto, não objetiva resulta- dos decisórios diretos. Ela se encaixa no processo administrativo principalmente como ferramenta instrutória. Daí que os elementos extraídos das audiências não podem ser vistos como vinculantes da decisão final do Estado. O gestor público está obrigado a garantir a participação, garantir o debate, garantir respostas funda- mentadas aos participantes e considerar o que se obteve na audiência ao elaborar a decisão, mas disso não se extrai que a audiência sirva para decidir o processo, nem que conclusões eventualmente obtidas na audiência configurem a antecipação de um posicionamento final da Administração. O valor científico da obra aqui prefaciada não se esgota na reflexão crítica a respeito da audiência dentro do contexto maior do processo administrativo. Sua relevância se amplia por oferecer aos estudiosos e práticos do direito uma série de considerações sobre o funcionamento das audiências no dia a dia. Isso se dá mediante a proposição de um regime geral que as discipline, o que abrange não somente aspectos já tratados pela LPA federal e outras normas procedimentais administrativas, mas muitos aspectos ignorados pela legislação. Para construir esse regime jurídico, Bim se debruça sobre os efeitos do pedido de audiência, o direito de acesso aos autos como requisito de participação efetiva, a convocação da audiência em todos os seus detalhes, a ordem dos trabalhos, a duração e a polêmica questão do direito de ser ouvido durante a audiência, o número de audiências necessário para garantir a efetiva participação, o dever de o Poder Público assegurar o pluralismo na participação, o dia e o horário da audiência, a questão da oferta de transporte e alimentação aos participantes etc. A utilidade do regime jurídico proposto, vale reiterar, supera o âmbito do Poder Executivo. Ele é extensível ao Judiciário, ao Legislativo, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública, entidades que frequentemente se valem de mecanismos participativos com finalidade instrutória. Não se deve ignorar, porém, que as normas gerais de processo administrativo cedem a previsões específicas. Por isso, seria perigoso lançar mão da teoria geral sem investigar as normas especiais que a derrogam em determinados setores. reconhecendo a problemática, Bim conclui sua obra com uma ampla análise de inúmeros diplomas normativos, legislados e administrativos, que tratam da questão. Com isso, arremata o tratamento do tema de maneira tanto crítico, quanto exaustiva. Não há dúvidas de que as palavras desse prefácio são poucas para descrever o conteúdo da obra que ora se lança ao mercado. Sem prejuízo, os aspectos aqui pincelados autorizam uma afirmação conclusiva. O estudo de Eduardo Bim sistematiza, como nenhum outro, o estudo das audiências públicas no Brasil. Merece, pois, ser lido e debatido pelos profissionais do direito e por aqueles que, em seu quotidiano, lutam para o aperfeiçoamento da gestão pública brasileira e sua ciência. Thiago Marrara Professor de Direito Administrativo da USP (FDrP) Doutor pela Universidade de Munique (LMU)

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