Conclusão - Audiências públicas

CONCLUSÃO A cidadania, inicialmente entendida como participação na vida da polis, restringiu-se a poucos cidadãos. Essa concepção restritiva foi superada a partir do momento em que ela abarcou o direito a ter direitos e prescindiu da capacidade eleitoral ativa (cidadania com sufrágio) ou passiva. Essa concepção ampla de cidadania é adotada nos instrumentos de participação administrativa, que implementam a democracia participativa tanto quanto os tradicionais instrumentos políticos (v.g., plebiscito, referendo), embora estes trabalhem com a concepção restrita de cidadania. A cidadania concretizada pelas audiências públicas é a que prescinde da capacidade eleitoral, seja ativa ou passiva. Por isso, audiência pública é instrumento da cidadania ampla, pois ela incorpora o cidadão à política. Essa participação é efetiva, ainda que não seja vinculante, porque influencia o rumo das decisões estatais mediante o aperfeiçoamento do controle, nos termos expostos por Bernard Crick: “control means influence, not direct power; advice, not command; criticism, not obstruction; scrutiny, not initiation; and publicity, not secret. Here is a very realistic sense of Parliamentary control which does affect any Government”. 1 Entretanto, existem limites à audiência pública como instrumento da cidadania. Por faltarem previsão constitucional e capacidade eleitoral ativa, essa participação via audiência pública não vincula o Estado, apenas exerce um qualifica- do controle-fiscalização. Portanto, os instrumentos administrativos não orgânicos, que tradicionalmente se alocam na democracia participativa – como são as consultas e audiências públicas – objetivam, dentro da atual ordem constitucional, apenas institucionalizar um meio para a coleta de opiniões, sugestões e críticas, e não de ser um instrumento vinculante, destinado à coleta da opinião da cidadania em sentido estrito e, ipso facto, rígido e inflexível, como podem ser o plebiscito e o referendo. O fundamento jurídico para a realização da audiência pública é a expressa previsão legal, que prestigia o direito de participação decorrente da cidadania em sentido amplo, não a cláusula do devido processo legal. A sua realização não pode ser sacada diretamente de nenhuma cláusula constitucional ou de mera previsão infralegal, muito menos de uma hiperinterpretação constitucional, legal e/ou infralegal. A audiência pública constitui parte da democracia semidireta (ou participativa), embora não componha o seu núcleo, como são os instrumentos políticos de participação previstos na Constituição. Em outras palavras: ainda que não exista audiência pública, pode-se falar em plena democracia participativa, que não pode ser utilizada para criar, sem expressa base em lei, a realização de audiência pública. Mesmo que haja lei, ela tem que prever a audiência pública como obrigatória, porque a regra é a sua facultatividade, como corrobora a prática do Ministério Público e da Defensoria Pública. A finalidade da audiência pública é fazer com que a cidadania, em sentido amplo, participe do processo decisório estatal e, dessa forma, aproxime o povo das decisões políticas e aperfeiçoe as decisões a serem tomadas. Como a audiência pública prestigia a cidadania em conceito amplo, exige-se a potencialidade de participar, não a sua obrigatoriedade, tendo em vista que participar é direito, não dever. A sua finalidade é promover a discussão do tema aos que queiram participar, não impor o dever de participar, como ocorre quando está em jogo a cidadania em sentido estrito. Ao se configurarem como instrumento da cidadania, as audiências públicas sofrem os efeitos do caráter dúplice do conceito, isto é, o de englobar direitos e deveres. A cidadania também envolve deveres, não existindo a necessidade de publicar a sua convocação em outros instrumentos que não o diário oficial e nem em sobrecarregar a publicidade do tema, salvo expressa previsão em lei. Embora a audiência pública acabe reforçando a publicidade e, consequente- mente, a informação, essas funções não lhe são imanentes e nem imprescindíveis, a menos que a lei assim disponha. Fruto do reconhecimento da ampliação da cidadania, as comunidades indígenas e os povos tribais também devem ser ouvidos nos casos específicos previstos na Constituição e na Convenção OIT 169. Na sua condição de cidadãos, embora com peculiaridades, os índios e os povos tribais devem ser consultados quando houver exploração de recursos em suas terras, antes da implementação do empreendimento. Como a audiência pública não trabalha com a cidadania em sentido estrito, sua importância procedimental deve ser relativizada, ainda mais se for considera- do que ela não é o único ou o primordial meio de participação administrativa. Existem outras formas de a cidadania em sentido amplo se expressar, destacando-se como cruciais a consulta pública ou, na seara do licenciamento ambiental, os comentários. O informalismo faz parte da audiência pública, pois ela se encaixa em procedimento administrativo, que resulta na maior possibilidade de convalidar algum vício porventura existente em sua realização. Embora a audiência pública indubitavelmente reforce a democracia participativa, ela, assim como os demais instrumentos administrativos ou mesmo políticos da democracia semidireta, não pode ser considerada a salvadora da legitimidade e da democracia. A democracia não é salva pelos instrumentos de participação, sejam eles administrativos, sejam políticos, simplesmente porque eles são meros acessórios ao regime representativo. É a educação do povo que fortalece a democracia, que, antes de tudo, é representativa. Jogar as esperanças nos instrumentos participativos ignora essa realidade, distorcendo o conceito de democracia adota- do pela Constituição de 1988. Como bem lembrou Kymlicka e Norman, “a saúde e a estabilidade da democracia moderna dependem não apenas da justiça de sua ‘estrutura básica’, mas também das qualidades e atitudes dos seus cidadãos”. 2 CRICK, Bernard. The Reform of Parliament. 2. ed. London: Weidenfeld and Nicolson, 1970. p. 80 – destaques no original. KYMLICKA, Will; NORMAN, Wayne. return of the citizen: a survey of recent work on citizenship theory. Ethics. vol. 104, n. 2. p. 353-381. Chicago: The University of Chicago Press, jan. 1994. p. 352 – tradução livre.

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