Prefácio - Ricardo Villas Bôas Cueva - Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas

Prefácio O professor Modesto Carvalhosa vem influenciando gerações de profissionais do Direito, em sua produtiva vida de estudioso, com obras de referência no Direito Privado, notadamente os seus sempre citados “Comentários à Lei de Sociedades Anônimas”, entre tantos outros livros doutrinários. Mas não só. Também no Direito Público avulta sua valiosa contribuição, como se pode ver em seu “Direito Econômico – Obras Completas”, edita do pela Revista dos Tribunais em 2013, trabalho imprescindível para os estudos acadêmicos. Agora, mais uma vez, ele vem brindar o público leitor com obra seminal, desta feita sobre a nova Lei Anticorrupção. Ao ler os originais de mais este trabalho marcante por sua originalidade, desde logo me admirei com sua rigorosa metodologia e didática que bem revelam a longa carreira de magistério de seu Autor, pois, é difícil encontrar um estudo jurídico que reúna, como aqui, estes três grandes predicados: profundidade dos conceitos, abrangência plena do tema e impecável clareza e simplicidade do texto. Vazado em um discurso jurídico límpido e desassombrado, o trabalho sustenta a plena aplicabilidade dos princípios penais à Lei Anticorrupção, no contexto do que defende, de modo original e polêmico, ser uma relação jurídico-material de direito penal-administrativo e não de direito administrativo sancionador, como sustentado em grande parte da doutrina contemporânea. Nesse ponto, vale ressaltar, o Autor sustenta o regime da objetividade dos delitos de corrupção enumerados na Lei com uma argumentação consistente, trazendo para a discussão as duas correntes doutrinárias sobre o tema. Ressalta o estudo o elenco dos sujeitos ativos do delito de corrupção para além das sociedades mercantis e demais entidades do segundo setor, para incluir aquelas do terceiro, na medida em que, tanto umas como outras, têm deveres perante o Poder Público, uma vez que são contribuintes, e com ele podem contratar concessões, permissões, obras, serviços, fornecimentos, convênios, parcerias e receber subvenções. Nesse amplo contexto, o estudo define o que é organização empresarial, que pode ser atributo de qualquer pessoa jurídica, independentemente de seus fins e do setor onde atua. Por outro lado, o Autor não se furta a criticar a competência outorgada pela Lei Anticorrupção à autoridade máxima do ente público para instaurar e julgar o processo administrativo, apontando o conflito formal de interesses que aí existe. Tal competência constitui na realidade uma falha da Lei, cabendo, sem dúvida, aos Tribunais interpretar tais normas para atribuir a competência exclusivamente às corregedorias e aos órgãos de fiscalização integrantes do organograma do Estado. Outro ponto louvável da obra é a descrição da corrupção no mundo globalizado, acabando por focá-lo no Brasil, ao descrever de maneira incisiva os efeitos nefastos de tal prática para o nosso país. Segue-se uma lição preciosa sobre a disfunção pública e seus efeitos, que vão muito além da mera deficiência na prestação de serviços, evidenciando a devastação estrutural, institucional e de valores políticos e sociais que acarreta. A propósito, o capítulo sobre a corrupção e a disfunção pública valeria o livro todo, tanto por sua profundidade como pela reflexão que nos provoca diante dessas questões fundamentais. Já o capítulo sobre a aplicação extraterritorial da Lei Anticorrupção, que o Autor credita ao Prof. Luiz Fernando Kuyven, constitui outra contribuição inestimável, ao demonstrar, por um lado, as falhas das normas que esparsamente tratam da matéria no texto legal estudado e que desconsideram a soberania estrangeira e, por outro lado, ao propor sua interpretação sistemática, mediante a adoção da regra da ultraterritorialidade condicionada e da permanente cooperação internacional. Também nos capítulos que tratam do instituto da solidariedade, vê-se que o Autor navega com maestria pelas intrincadas normas que a regem e propõe uma interpretação razoável. A Lei Anticorrupção, neste aspecto, é realmente confusa e estava a clamar por um estudo do porte deste, apto a contribuir para a fixação de uma interpretação segura e conforme aos princípios que norteiam a matéria. Ademais, a tipificação dos delitos de corrupção, objeto do artigo 5º da Lei, é rigorosamente analisada, enfatizando o Autor as regras do Direito Penal que fundamentam o processo administrativo e as punições respectivas. É admirável aqui a preocupação com a literalidade dos tipos infracionais, que o Autor procura diferenciar daqueles próprios do processo administrativo sancionador. Também é de se louvar, nesse passo, a ênfase emprestada à adequação dos princípios da administração pública aos delitos de corrupção, fruto de uma exaustiva análise de todos eles, que são invocados pela Lei Anticorrupção como causa para a aplicação das penalidades administrativas ali definidas. Na parte que trata do regime de leniência, o Autor aponta a inadequada transcrição das regras especificamente atinentes aos cartéis, que muito mal se conformam com as especificidades do delito de corrupção objeto da Lei comentada. Daí o meritório e bem sucedido esforço do Autor em dar uma interpretação razoável para tais preceitos, visando à efetiva aplicação do instituto da leniência no processo administrativo, para, assim, ampliar o número de participantes do delito corruptivo, seja do lado das pessoas jurídicas, seja dos agentes públicos envolvidos. O mesmo cuidado se verifica no capítulo sobre compliance, que o Autor denomina Regime de Conformidade. Ao invés de simplesmente reproduzir conceitos e regras do Direito norte-americano, como muitas vezes se vê em enfadonhas abordagens sobre o tema, o presente estudo traz um importante retrospecto sobre a evolução dessa prática a partir dos anos 1980, lembrando que de uma iniciativa incipiente de algumas empresas, institucionalizou-se a questão nos anos 1990, por meio da criação de institutos especializados para, finalmente, ser assumida pelo próprio Estado, como ocorre em nosso país, mercê do Código Nacional de Ética promovido pela Controladoria Geral da União em convênio com o Instituto Ethos. Nesse tema, o Autor aponta a tendência do Poder Público de induzir a adoção do regime de compliance pelas pessoas jurídicas do segundo e do terceiro setores, criando uma nítida distinção entre aquelas que adotam o Código Nacional de Ética da CGU e as que não o fazem, tendo como efeito, ainda que não declaradamente, o nível de relações com o Poder Público. Outra valiosa contribuição se encontra no sequenciamento dos dois processos previstos na Lei Anticorrupção ao apontar o Autor que a causa de pedir da ação civil pública de reparação dos danos aos cofres públicos é a punição anteriormente decretada no processo administrativo. Nesse aspecto, a obra muito claramente distingue o exercício do jus puniendi do Estado, mediante o devido processo administrativo e os efeitos reparatórios em sede da ação civil pública, ao esclarecer os distintos momentos e objetos de um e de outro procedimento. Aponta que não há unidade processual no caso, no sentido de que na ação civil pública não mais se discute a conduta corruptiva da pessoa jurídica, não sendo, portanto, o processo judicial reparatório uma instância recursal de conhecimento daquela condenação administrativa. É de se destacar também a grande relevância que o Autor atribui ao dano moral sofrido pelo Estado em decorrência das práticas de corrupção concertadas entre as pessoas jurídicas e os agentes públicos, para concitar o seu necessário ressarcimento, independentemente de terem sido apurados danos materiais. Em todo o seu desenvolvimento, a obra transpira a marca pessoal de seu Autor, que defende, com brio e originalidade, posições doutrinárias próprias, fundadas não em argumentos de autoridade, mas na análise cuidadosa das regras e princípios jurídicos de nosso ordenamento. Trata-se, em resumo, de livro de grande fôlego, que contribuirá decisivamente para o aprimoramento dos estudos acerca da nova Lei Anticorrupção. Brasília, 31 de outubro de 2014. Ricardo Villas Bôas Cueva Ministro do ST

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