Capítulo 8 - A construção doutrinária da responsabilidade penal objetiva - Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas

Capítulo 8- A construção doutrinária da responsabilidade penal objetiva Originou-se a teoria penal objetiva da ideia de que, em razão do risco decorrente da atividade do agente, a reparação do dano deveria prescindir da análise de sua intenção. Essa noção é sempre fundada na ideia da conduta que acarreta o dano ao bem jurídico, tornando irrelevante para o processo penal e seu julgamento no caso concreto o elemento subjetivo da intenção 1 . Isto posto, a noção de responsabilidade objetiva fundada no risco é incompatível com a finalidade do processo penal-administrativo instituído pela presente Lei, na medida em que a conduta corruptiva nunca pode ser culposa, como referido, na medida em que se trata de um delito formal e de mera conduta. O processo penal-administrativo instituído na presente Lei, não tem por finalidade apurar e mensurar a extensão de um dano causado ao Estado, mas, pelo contrário, destina-se a punir (jus puniendi) e a reprimir uma conduta que afeta o equilíbrio social e, portanto, lesiva ao bem jurídico. A punição instituída no Capítulo IV tem como efeito a reparação civil instituída no Capítulo VI. Desse modo, temos na presente Lei a esfera penal-administrativa que, no caso, é competente para punir, dentro do critério objetivo de julgamento, a conduta lesiva ao Estado. A propósito, a instituição da responsabilidade objetiva consta do veto à emenda apresentada no Congresso Nacional ao Projeto de Lei apresentado pelo Poder Executivo; emenda essa que desfigurava os fins e a efetiva aplicabilidade da presente Lei. Assim é que o Projeto aprovado pelo Congresso e levado à sanção presidencial introduzira um parágrafo segundo ao artigo 19, determinando que “dependerá da comprovação de culpa ou dolo a aplicação das sanções previstas nos incisos II a IV do caput deste artigo”. Essa emenda aprovada pelo Congresso e que tornava praticamente impossível a aplicação das sanções penais-administrativas constantes da presente Lei foi objeto do indispensável veto da Presidência da República, nos seguintes termos: “Tal como previsto, o dispositivo contraria a lógica norteadora do projeto de lei, centrado na responsabilidade objetiva de pessoas jurídicas que cometam atos contra a administração pública. A introdução da responsabilidade subjetiva anularia todos os avanços apresentados pela nova lei, uma vez que não há que se falar na mensuração da culpabilidade de uma pessoa jurídica”. Com efeito, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica é consagrada no Ordenamento Jurídico brasileiro, como se pode ver das referidas legislações concernentes ao campo ambiental, tributário, defesa do consumidor e de defesa da Ordem Econômica. Não obstante, permanece a polêmica em torno da questão da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica. A corrente contrária à responsabilidade objetiva invoca o caráter eminentemente penal do processo administrativo instituído na presente Lei. Argumenta que o tipo penal não dispensa o elemento subjetivo a par daquele objetivo, razão porque não estariam formados os dois requisitos da sanção penal, que de- manda necessariamente a configuração do dolo e da culpa. Para tanto, os autores contrários à responsabilização objetiva, no plano do processo administrativo sancionatório, invocam o artigo 5º, LVII da Constituição Federal, para lembrar que o seu rito sumário não dispensa a subjetividade na aplicação das penalidades correspondentes. Nesse sentido, Marcelo Trindade, em voto no Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários: “As hipóteses de infração de natureza objetiva, em que poderá ser adotado rito sumário de processo administrativo, foram assim identificadas pela Instrução CVM 251, por não exigirem exaustiva dilação probatória, não se tratando em nenhum momento de distinção entre a natureza objetiva ou subjetiva da responsabilidade de seu autor 2 .” No mesmo sentido, Nelson Eizirik, que afirma ser inadmissível a responsabilidade objetiva na órbita disciplinar, podendo sempre o indiciado (em processo administrativo sancionatório) provar a ausência de culpa 3 . Ainda, no sentido contrário à dispensa do elemento subjetivo, as razões de Marçal Justen Filho: “Um Estado Democrático de Direito abomina o sancionamento punitivo dissociado da comprovação da culpabilidade”. Não se pode admitir a punição apenas em virtude da concretização de uma ocorrência danosa material. Pune-se “porque” alguém agiu mal, de modo reprovável, em termos antissociais. A comprovação do elemento subjetivo é indispensável para a imposição da penalidade, ainda quando se possa pretender a objetivização da culpabilidade em determinados casos.” E ainda, o festejado Autor ao fazer o paralelismo entre sanção penal e sanção penal-administrativa, reproduz a doutrina de Franck Moderne sobre a matéria: “A regra é, então, que a repressão administrativa, como a repressão penal, obedece ao princípio da culpabilidade e que as sanções administrativas, como as sanções penais, não podem ser infligidas sem que o comportamento pessoal do autor da infração não tenha revelado uma culpa, intencional ou de negligência” E Justen comenta ainda, a propósito da doutrina de Moderne, que o mesmo autor acrescenta, logo após, que a responsabilização administrativa (ou penal) das pessoas jurídicas pressupõe a transferência à entidade penalizada das condutas culposas (“fautes”) cometidas pelos órgãos que exprimem sua capacidade jurídica ou por seus agentes 4 . No mesmo sentido Eduardo Bim, ao afirmar que a corrente que admite a responsabilidade objetiva confunde o papel do direito administrativo sancionador ambiental com a responsabilidade civil ambiental, afirmando que o princípio da culpabilidade é também princípio do direito administrativo sancionador 5 . Ainda no sentido contrário à responsabilidade objetiva em processo administrativo sancionador, Maysa Verzola: “Na Espanha é (...) vedada a responsabilidade objetiva. O conceito de culpabilidade é transferido da esfera penal para a esfera administrativa, adquirindo uma peculiaridade: a da possibilidade de culpabilidade de pessoas jurídicas. Também no Direito Administrativo brasileiro não se admite a responsabilização objetiva do infrator, como consequência direta do princípio da presunção de inocência e do princípio do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LV e LVII da CF). Não basta a mera voluntariedade para a configuração da infração administrativa. De acordo com a teoria clássica da ação, bastava a causação física. Porém, com o advento da teoria finalista, adotada pelo Código Penal e transportada para o Direito Administrativo, a mera voluntariedade não basta. É necessário que haja imprudência, imperícia ou negligência do responsável 6 .” Isto posto, cabe invocar a doutrina da admissibilidade do critério objetivo para o processamento e julgamento da pessoa jurídica mediante processo penal-administrativo. Nesse sentido, Fabio Medina Osório: “A pessoa jurídica, dotada de personalidade criada pelo direito, não possui, naturalmente vontade ou consciência, circunstância que lhe afasta do alcance da culpabilidade, pessoalidade da pena, exigências de dolo ou culpa, e mesmo individualização da sanção. Tais princípios resultam ligados a uma específica capacidade humana de obrar, tendo por pressupostos atributos exclusivamente humanos. Somente o homem pode evitar comportamentos proibidos através da consciência e da vontade. As pessoas jurídicas, por seu caráter fictício, atuam sob o domínio dos homens, em geral de uma pluralidade de vontades, sendo que, em si mesmas, não es- tão dotadas desses atributos humanos. Tão óbvia essa afirmação que, em realidade, dispensa maiores comentários 7 .” E sobre a inegibilidade de culpa em relação especificamente às pessoas jurídicas, doutrina o insigne Autor: “No plano do Direito Administrativo Sancionador, pode-se dizer que a culpabilidade é uma exigência genérica, de caráter constitucional, que limita o Estado na imposição de sanções a pessoas físicas. Não se trata de exigência que alcance também as pessoas jurídicas. (....). Não há, e isso é importante enfatizar, nenhuma exigência constitucional de culpabilidade das pessoas jurídicas, especialmente no Direito Administrativo Sancionador.” Invoca ainda Medina Osório as razões de Patrícia Plaza Ventura quando menciona decisões do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia no sentido de admitir certas modalidades de responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas desde que haja previsão legal ou constitucional no âmbito interno dos Estados-membros. O fundamento dessa responsabilidade objetiva, segundo o Tribunal, é a proteção de interesses coletivos.

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