Capítulo 33 - A ultraterritorialidade condicionada - Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas

Capítulo 33. A ultraterritorialidade condicionada Inicialmente, em linha com o princípio da proteção jurídica necessária, o artigo 7º, caput, I, do Código Penal prevê uma ultraterritorialidade incondicionada aplicada a alguns bens jurídicos específicos de suma importância para o Estado, e cuja violação configura risco à ordem pública e à reputação do Estado. Daí seu tratamento diferenciado pela nossa Lei Penal. Assim, o Ordenamento Penal brasileiro poderá punir violações a tais bens mesmo se praticadas fora do território nacional, independentemente da nacionalidade do agente e/ou do fato de o crime ser punível no local onde foi praticado. Isto sem precisar da anuência dos demais países envolvidos. Enquadram-se nessa regra crimes de genocídio e contra a vida ou a liberdade do Presidente da República. Por sua vez, o artigo 7º, § 2º, do Código Penal estabelece uma ultraterritorialidade condicionada. Segundo tal norma, a Lei Penal brasileira poderá ser aplicada a crimes cometidos fora do nosso território, porém, sob condições bastante restritivas, que uma vez não preenchidas, cumulativamente, impossibilitam a sua aplicação. Em particular, para os fins de análise da presente Lei interessa a ultraterritorialidade condicionada aplicada a duas categorias de crimes previstas no artigo 7º, II, a e c do Código Penal: (i) aqueles crimes que por tratado o Brasil se comprometeu a reprimir e (ii) aqueles crimes praticados por brasileiros no exterior. Na primeira hipótese, o Código Penal visa prevenir crimes de maior gravidade e de repercussão mundial, em especial aqueles que violam direitos humanos. Com efeito, a repressão de tais atos interessa a toda a sociedade internacional, independentemente do local onde foram praticados ou da nacionalidade dos envolvidos. E, embora tenha sido concebido para violações a direitos humanos, pode-se aceitar que esse dispositivo englobe, por analogia, os atos e condutas de corrupção, tendo em vista que o Brasil ratificou, entre outros textos, a Convenção Intera mericana contra a Corrupção, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE. A propósito, os atos que atentem contra os tratados ratificados pelo Brasil são expressamente descritos como atos lesivos que a presente Lei busca coibir, nos termos do seu artigo 5º, caput 1 que define quais práticas constituem condutas lesivas à administração pública, nacional ou estrangeira. Importante destacar que nessa definição a presente Lei utiliza tanto conceitos domésticos, como a contrariedade ao “patrimônio público” ou aos “princípios da administração pública”, quanto a noções internacionais, como a contrariedade aos “compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”. Ora, se os compromissos internacionais dão algumas diretrizes do que deve ser coibido pelos Estados ratificantes, já os conceitos de “patrimônio público” ou de “princípios da administração pública” podem variar de um ordenamento jurídico ao outro. E, com efeito, alguns princípios administrativos podem não ser compartilhados pelos Estados ratificantes. Essa imprecisão da presente Lei pode constituir uma excludente de punibilidade e um entrave à sua aplicação ultraterritorial, haja vista que a ultraterritorialidade exige que o ato seja considerado ilícito no local onde foi praticado e não apenas no Brasil. Na segunda hipótese, fundamentada no princípio da nacionalidade, e para evitar a impunidade de brasileiros que não podem ser extraditados, o Código Penal pune crimes praticados por brasileiros no exterior. Isso poderia incluir delitos de conduta corruptiva cometidos por empresas brasileiras no exterior. Porém, diante do caráter subsidiário da jurisdição nacional sobre crimes cometidos no exterior, para a incidência do Direito Penal brasileiro, em qualquer das hipóteses acima, é necessário que cinco principais condições sejam rigorosa e cumulativamente satisfeitas. Primeira condição: é necessário que o infrator entre no território nacional. Não tendo a pessoa jurídica estrangeira sede e nacionalidade brasileiras, pode-se cogitar que a constituição de uma filial ou de uma representação pudesse satisfazer esse requisito. Porém sobre esse ponto surge outra questão: a de saber qual a noção jurídica de controle acionário da pessoa jurídica, ou seja, quais os critérios de participação acionária, comando e gestão devem ser aplicados para se considerar que a sociedade constituída no Brasil é a própria sociedade estrangeira responsável pela corrupção ou, pelo menos, para justificar a desconsideração daquela pessoa jurídica. Isto posto, devemos seguir a peculiar noção de controle societário do Direito brasileiro 2 , ou devemos consultar o Direito estrangeiro para saber se o infrator é, no seu Estado de origem, controlado ou não pela sociedade em questão? Segunda condição: que o fato seja punível também no país em que foi praticado. É fundamental, para a proteção da soberania estrangeira, que o ato seja penalmente relevante tanto no Brasil quanto no país onde foi praticado, pouco importando o nome que o crime receba em cada um dos sistemas jurídicos. Basta que o ato seja vinculado a um tipo penal tanto na lex fori como na lex loci delicti. Terceira condição: estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a Lei brasileira autoriza a extradição (art. 7º, § 2º, c, do CP), isto é, que não seja crime político ou de opinião. Quarta condição: não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena. Naturalmente, a subsidiariedade da Lei Penal brasileira nos casos de ultraterritorialidade condicionada impede o exercício da jurisdição nacional se o infrator foi absolvido ou, se condenado, cumpriu integralmente a pena no exterior. Em ambas as situações, inexistirá o direito de punir, quer por achar-se extinto, quer por ser declarado inexistente, ou ainda, por já estar satisfeito com o cumprimento da sanção imposta em sentença condenatória. Se o agente, entretanto, mesmo condenado, não cumpriu a pena ou o fez parcialmente, será possível a aplicação da Lei Penal brasileira, observando-se as regras do non bis in idem, conforme previsto nos artigos 8º e 42 do Código Penal. Quinta condição: não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a Lei mais favorável. Como na condição anterior, o infrator não poderá ser processado no Brasil se for protegido por qualquer causa extintiva de punibilidade, a exemplo do que prevê o artigo 107 do Código Penal brasileiro. Em especial, no que se refere aos delitos cometidos por estrangeiro contra brasileiro fora do território nacional, a Lei Penal brasileira exige, para o exercício de nossa jurisdição, além de serem preenchidos todos os requisitos já citados, que não tenha sido pedida ou, se pedida, tenha sido negada a extradição. Ademais, exige-se que tenha havido requisição do Ministério da Justiça, o qual representando o Judiciário brasileiro resolverá sobre a conveniência e a oportunidade da ação penal. Isto posto, além dos atos de corrupção sancionados pela presente Lei, tem sido aplicada a Lei federal brasileira nº 12.529 de 2011 para sancionar administrativamente práticas restritivas ao livre comércio verificadas no exterior. Porém, a exemplo da presente Lei, as regras de processo administrativo sancionatório anticoncorrencial instituídas na referida Lei de 2011 não trazem uma disciplina satisfatória da extraterritorialidade ou da ultraterritorialidade. Com efeito, à exceção do artigo 7º, § 2º, do Código Penal, não há nas demais normas legais brasileiras previsão das condições a serem satisfeitas para a aplicação da ultraterritorialidade condicionada. De fato, parece que a aplicação desse instituto caberia à discricionariedade do agente sancionador administrativo. Ocorre que a previsão de aplicação ultraterritorial sem os correspondentes limites, por si só, constitui grave violação do Direito Internacional e coloca o Brasil como um Estado unilateralista nas suas relações internacionais. Nessa linha, com base no critério do local da verificação dos efeitos do ato ilícito, tal como instituído no artigo 2º da referida Lei 12.529/11, prevê-se a incidência da Lei brasileira a atos praticados no exterior simplesmente porque eles podem produzir efeitos no Brasil, sem qualquer outro limite 3 . O que importa, objetivamente, nesse caso, não é a nacionalidade ou o domicílio dos agentes, mas o mercado relevante no qual serão produzidos os efeitos da conduta anticoncorrencial. Vale destacar que a referida Lei do CADE é competente para apreciar a conduta restritiva ainda que os efeitos não se tenham concretizados em território brasileiro, mas exista a possibilidade de que tal fato venha a ocorrer. Ou seja: a competência da Lei brasileira antitruste estende-se ainda que os efeitos considerados sejam potenciais. Trata-se de delito formal ou de mera conduta e não de delito de resultado. Isto posto, embora não haja uma definição clara, as decisões administrativas do Cade têm reconhecido a competência do órgão, desde que a conduta possa gerar efeitos no Brasil, não exigindo qualquer outra condição. Porém, a realização de efeitos sobre nosso Estado é um critério bastante aberto e até subjetivo em alguns casos, o que gera insegurança jurídica e prejudica a cooperação internacional. É justamente por essa razão que as decisões do Cade e as decisões unilaterais tomadas em outros países encontram tanta resistência para serem reconhecidas e executadas fora de seu território. Com efeito, torna-se muito rara a cooperação por parte de autoridades do país cuja soberania é provocada pela autoridade brasileira, principalmente na obtenção de provas sobre as atividades ocorridas em outro Estado. § 1º Reputa-se domiciliada no território nacional a empresa estrangeira que opere ou tenha no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante.”

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