Capítulo 56 - A superação da dupla imputabilidade - Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas

Capítulo 56- A superação da dupla imputabilidade A responsabilização direta da pessoa jurídica, independentemente daquela de seus gestores, conforme institui a presente Lei, vem por cobro, no âmbito de delito da corrupção, aos conhecidos entraves da dupla imputabilidade: pessoa jurídica e seus gestores. Como se sabe essa tendência jurisprudencial da dupla imputabilidade visou sempre superar a ausência do tipo subjetivo do dolo que não se aplica à conduta da pessoa jurídica. Para isso agarrou-se a jurisprudência do STJ ao vínculo dos gestores à prática do delito para, assim, estender à pessoa jurídica por eles administrada o tipo subjetivo, como elemento essencial do delito no plano criminal. A respeito dessa tentativa de superação, ainda no âmbito da referida Lei n. 9.605 de 1998, leciona Davi Tangerino, invocando acórdão do STJ, da lavra do ilustre Ministro Gilson Dipp: “A referida lei atendeu a uma alegada necessidade político-criminal de criar critérios de responsabilização de empresas em razão da prática de atos delitivos, sobretudo em face da constatada dificuldade de se imputá-las, no seio das pessoas jurídicas, às pessoas físicas que efetivamente agiram, haja vista a descentralização e compartimentalização das organizações empresariais 1 .” Nesse aspecto a presente Lei supera o contorcionismo jurisprudencial do E. Superior Tribunal de Justiça, criado pela necessidade de dupla imputação – da pessoa jurídica e de seus dirigentes – para, assim, poder atender ao segundo elemento do delito, o tipo subjetivo. A matéria é ainda trazida por Tangerino: “Só se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica quando houver imputação simultânea entre o ente moral e a pessoa física, haja vista que apenas esta age com elemento subjetivo próprio” 2 . Por essa jurisprudência, vê-se a dificuldade de se condenar a pessoa jurídica em processo penal, face à ausência de tipo subjetivo aplicável como elemento do delito, razão pela qual haveria de simultaneamente se condenar os gestores pessoas físicas, a quem se pode atribuir o dolo. Ademais, nesse caminho da dupla imputação vê-se a tendência de se colocar o núcleo da ação criminal nas pessoas físicas dos gestores da pessoa jurídica, sendo esta considerada mera receptora dos benefícios promovidos por aqueles. Com esse contorcionismo jurídico acaba se atribuindo artificialmente à pessoa jurídica o elemento volitivo, ou seja, uma conduta também dolosa, como se esta tivesse discernimento psicológico para sua inclusão no tipo subjetivo, enquanto elemento próprio do delito penal. Por essa jurisprudência, a pessoa jurídica na ação penal acaba sendo mero instrumento dos desígnios criminosos dos seus gestores, como se não fosse sujeito de direito, com personalidade jurídica própria, de natureza inteiramente diversa daqueles. Condena-se a pessoa jurídica porque seus dirigentes são condenados e na medida em que estes procuram beneficiar não a si próprios (?) mas aquela. É o entendimentos do STJ, fundado no escopo dos gestores da pessoa jurídica, como descreve Tangerino: “O segundo está relacionado ao escopo dessa ação individual (dos gestores): ela deve se dar no interesse ou no benefício da pessoa jurídica (“que a infração praticada se dê no interesse ou no benefício da pessoa jurídica”) e deve ter sido perpetrada “no amparo da pessoa jurídica”, de mais a mais, deve ocorrer dentro da “esfera de atividades” do ente moral 3 .” Tangerino comenta outro arresto do STJ fortalecendo agora o papel da pessoa jurídica na conduta delituosa: – “ Por fim, a relação entre o agir individual e a pessoa jurídica: o delito deve decorrer de uma decisão da pessoa jurídica e a pessoa física deve ter um determinado vínculo com a jurídica” 4 . Isto posto, o requisito de deliberação prévia da pessoa jurídica para a configuração do delito por ela praticado no âmbito da dupla imputação, é de uma insubsistência flagrante. Não se pode, com efeito, conceber que a conduta delituosa seja objeto de ordem do dia, de discussão e de deliberação do órgão coletivo da pessoa jurídica. A propósito, poder-se-ia absurdamente imaginar que dos relatórios internos da diretoria ou aqueles apresentados nas reuniões do Conselho de Administração constassem as atividades corruptivas desenvolvidas no período junto ao Poder Público. Poder-se-ia conceber que houvesse proposta da Diretoria ou dos próprios conselheiros de administração no sentido de conduzir a pessoa jurídica à prática de corrupção, pontual ou permanente? Poder-se-ia, dentro do regime de governança da pessoa jurídica estabelecer no seu organograma divisões ou departamentos especializados na prática de corrupção junto aos entes públicos, nacionais ou estrangeiros? Por tudo isso fica evidente que para transpor o elemento subjetivo do delito, ou seja, a ausência tipo subjetivo quando se trata de conduta da pessoa jurídica, nada mais apropriado do que a esfera administrativa para a instauração do devido processo de natureza penal.

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