Capítulo 77 - Princípio da supremacia do interesse público - Considerações Sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas

Capítulo 77- Princípio da supremacia do interesse público Trata-se do fundamental princípio do Direito Público e que se aplica rigorosamente na formação e na promulgação das leis e seus consectários, bem como na sua aplicação pelos agentes públicos. O princípio em tela é a própria razão do Estado Democrático de Direito. Assim, a lei e o exercício da função administrativa devem necessária e unicamente atender o interesse público primário, ou seja, o da coletividade, não podendo, sob qualquer forma enganosa, atender ao interesse privado de determinado individuo ou grupo de pessoas físicas ou jurídicas. Também não pode atender ao interesse público secundário, ou seja, em benefício dos entes e agentes do Estado, quando não constitua, precipuamente, meio para o melhor atendimento do interesse público primário. Por outro lado, ainda que tenha a lei como destinatários determinados segmentos sociais, não poderá ocorrer nos seus dispositivos nenhum favorecimento face ao interesse coletivo. Assim, a lei, seja ela para atender toda a coletividade ou parte determinada dela, deve necessariamente visar ao bem comum, ou seja, o bem coletivo. A lei será sempre o instrumento direto ou indireto, imediato ou mediato, do bem estar coletivo no âmbito do Estado Democrático de Direito. Desse modo, a lei pode desde logo atender aos interesses de toda a coletividade e nela os interesses difusos, como os ambientais e o dos consumidores, como também pode regular determinados setores econômicos, grupos sociais, atividades culturais, de pesquisa, etc. Prevalece no Direito Público o conceito de poder-dever do Estado, indissoluvelmente ligado ao Estado Democrático de Direito. Assim, o Estado tem o poder unicamente para o cumprimento do seu dever de atender, em todos e quaisquer atos da respectiva competência, ao interesse primário, ou seja, aquele que se encontra fora dele (coletividade) e que é a própria razão e justificativa de sua existência. O atributo de poder é mero instrumento do seu dever de atender ao bem coletivo, ainda que este se fracione em segmentos de interesses legítimos. Não pode, em consequência, o Estado abusar do seu poder para atender a qualquer de seus jurisdicionados, sejam indivíduos, sejam grupos ou setores, sejam pessoas físicas, sejam elas jurídicas, o que caracterizará sempre o desvio de poder e o desvio de finalidade. Quando o beneficiário desse ilícito for a pessoa jurídica integrará ela o concurso de delitos na esfera da administração pública. Desse modo, pratica o delito o agente público em concurso com a pessoa jurídica beneficiária da ilicitude, em detrimento do interesse público. Nesse sentido, o interesse público primário é absolutamente indisponível no que respeita às leis e à sua aplicação e, por isso, inapropriável por qualquer jurisdicionado, e, assim, pela pessoa jurídica que se relaciona com o Estado 1 . A propósito, não custa repetir o fundamento básico de que o Estado não tem direitos, mas apenas deveres, para cuja consecução se vale de seu poder de produzir leis e de impor o estrito respeito às normas daí emanadas, enquanto instrumentos necessários e suficientes para a consecução do bem comum, na sua função precípua de aplicá-las e, assim, dar-lhes concreção. Desse modo, o Estado e seus representantes orgânicos – os agentes públicos – não podem, v.g., dispor de leis e de regula- mentos para favorecer uma pessoa jurídica que com ele contrata ou quer contratar, ou que têm deveres legais (contribuinte). Temos, assim, que o Poder Público não pode, de forma alguma, renunciar o seu poder-dever de cuidar do interesse público para, de qualquer modo, favorecer ou perseguir determinada pessoa física ou jurídica. É o que, a respeito, dispõe a Lei n. 9.784 de 1999 em seu artigo 2º: – caput e parágrafo único: ao exigir o “atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em Lei (inciso II). Isso tudo para dizer que o interesse público é irrenunciável por parte da autoridade administrativa, legislativa ou judiciária, no exercício de suas funções de aplicar a lei 2 . E o princípio da supremacia do interesse público primário sobre aquele privado ou secundário do próprio Estado, aplica-se à criação das leis. Estas não podem, de forma alguma, ainda que aparentem um caráter geral, ser geradas para atender ao interesse de um setor ou de uma determinada categoria de pessoa jurídica ou de um grupo delas ou de uma delas, individualmente, em detrimento do interesse público, como referido. Tal ocorrendo, incide-se diretamente na prática do delito de corrupção tendo em vista o benefício ilícito, real ou potencial, que suas normas trazem ou podem trazer aos interesses privados. Haverá, desde logo, nesses casos, o concurso delituoso entre os agentes políticos e as pessoas jurídicas interessadas na obtenção do benefício ilícito. O princípio se aplica, como reiterado, aos regulamentos das leis, agora a cargo dos agentes admi nistrativos. Isto tudo para concluir que as leis e seus regulamentos somente podem ser editadas e aplicadas, visando ao bem comum, ou seja, o interesse coletivo, jamais o interesse individual de pessoas físicas ou jurídicas. Esse princípio visa tanto à ordem econômica como à social. Este setor, de resto, é campo de ampla abrangência da presente Lei, na medida em que ela jurisdiciona administrativamente não apenas as pessoas jurídicas com intuito lucrativo mas, também, as do Terceiro Setor, que têm objeto social ou de benemerência, na medida em que, tanto umas como outras, relacionam-se com o Estado no plano legal (tributos), do contrato e do convênio, do termo de colaboração ou de fomento, seja para prestar serviços, seja para integrar o exercício das funções públicas (parcerias público-privadas com as OSs e OSSs), ou receber subvenções 3 . E sobre o caráter absolutamente indisponível e, portanto, irrenunciável do poder-dever do Estado de tutelar precípua e exclusivamente o interesse público primário, ensina o insigne mestre Celso Antonio: “As pessoas administrativas não têm, portanto, disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização” 4 . E no mesmo sentido, Di Pietro: “Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração tem o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão. Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei; não pode deixar de punir quando constate a prática de ilícito administrativo; não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em conflito com o bem estar coletivo; não pode deixar de exercer os poderes decorrentes da hierarquia; não pode fazer liberalidade com o dinheiro público. Cada vez que ela se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que esta sendo prejudicado 5 .” E quando se fala em prevalência absoluta do interesse público é importante reiterar que se trata de interesse público primário, ou seja, daquele que precipuamente atende aos interesses da coletividade e não ao interesse secundário dos entes estatais 6 . Assim, a supremacia do interesse público primário não se contrapõe apenas àquele privado, mas aos próprios interesses dos aparelhos do Estado, e dos seus agentes no seu sentido corporativo ou de exercício funcional de poder. Desse modo, o interesse público primário é a finalidade do exercício das funções do Estado, no âmbito dos seus três Poderes e da organização federativa (União, Estados e Municípios). Somente se deve atender ao interesse público secundário quando este constitui meio necessário ou útil ao precípuo atendimento do interesse público primário. Será o caso de reorganização ou de reacomodação das funções dos entes públicos e de seu aperfeiçoamento funcional, para assim melhor implementar as demandas da coletividade. Não há nenhuma supremacia do interesse público quando os agentes públicos visam a obter através de lei e regulamentos benefícios próprios de carreira ou vantagens individuais, como de resto, é o que mais se vê. Por outro lado, há uma absoluta quebra do princípio da supremacia do interesse público primário quando o agente exerce suas funções com abuso e desvio de poder. E, com efeito, a prevalência absoluta do interesse público se configura quando a administração visa atender ao interesse coletivo, fora de seu próprio âmbito, e não ao de seus agentes, mesmo quando revestidos de legalidade formal 7 . Cf. Di Pietro, ob . cit. pag. 71.

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