Epílogo - Berlin Alexanderplatz e a Estupidez - Direito Constitucional Pós-Moderno

O Reich alemão é uma república e quem não acredita nisso leva o troco na nuca DÖBLIN, Alfred. Berlin AlexanderPlatz Algo é realmente estúpido ou ordinário, não só uma interrupção da inteligência, mas também a tendência cega à destruição ou à fuga desprovida de sentido MUSIL, Robert. Sobre a estupidez Ao longo da obra, expusemos, de maneira analítica, dez lições finais em relação a cada uma das três partes. Sendo assim, consideramos haver permissão para elaborarmos o epílogo de forma livre, ligando-o diretamente à estética estruturante do livro. Parafraseando Döblin, chegamos ao final da obra, e é verdade ela se tornou longa, “mas precisava alongar-se e alongar-se cada vez mais, até atingir seu clímax, o ponto de inflexão, a partir do qual recai então a luz sobre o todo”. 1 Nosso ponto de inflexão estava, ao final desse longo trajeto, em demonstrar como a compreensão das forças obscuras degenerativas da democracia constitucional de Weimar, paradoxalmente, deveria iluminar as adequadas vias a serem trilhadas pela jurisdição constitucional. Quem não compreende como operam a exceção e a degeneração, fatalmente, estará inapto a elaborar uma teoria prescritiva e até mesmo descritiva do fenômeno jurídico. Por essa razão, a escolha das obras de Döblin e Musil justamente por serem as mais representativas da formação político-histórica de onde partiu o texto. Berlin AlexanderPlatz, possivelmente, é o livro que melhor reproduziu o contexto do período de Weimar, a efervescência do desenvolvimento do início do séc. XX aliada à eclosão de múltiplas ideologias rivais em constante tensão. O espaço urbano e social é apresentado por Döblin em minuciosos detalhes, utilizando inclusive onomatopeias para transparecer o ritmo das mudanças urbanísticas experimentadas à época. Em uma das frases mais emblemáticas do livro, o autor demonstra a resiliência e o sentimento de um pós-guerra: “a guerra não tem fim enquanto vivermos, o importante é ficar firme sobre as pernas”. 2 Essa passagem representa presságio do que viria a ser trazido com a 2ª Guerra Mundial, conferindo a sensação de que o sentimento bélico não teria fim. Do mesmo modo, Döblin ilustra com riqueza de detalhes o contexto social da época 3 e expunha o torpor do cidadão comum em face dos conflitos à época: Franze agora vende jornais nacional-populistas. Não tem nada contra os judeus, mas é a favor da ordem. Pois é preciso haver ordem no paraíso, isto qualquer um tem de reconhecer. 4 Franze, (anti) protagonista da obra de Döblin, é um dos cidadãos comuns não diretamente envolvido com política ou fiel seguidor a um específico modelo de ideologia. Contudo, a partir de um determinado momento, esses cidadãos passam a ser sufragados por uma força política e ideológica ainda sem precedente. Essa força surge mediante a crença na noção de um fim da história e do nascimento de um novo homem e a invenção da raça. 5 O tensionamento entre diversas ideologias adquire um nível de polarização a ponto de se tornar critério de identificação e exclusão. A polarização crescente faz com que isso aconteça. É justamente essa força autoritária que optamos por representar pela obra de Musil, haja vista que a estupidez humana é a força (anti) intelectual responsável pela consolidação da ideologia do nacional-socialismo. Por meio da estupidez, deu-se a ascensão de um “Nós” altamente excludente em que a domesticação do indivíduo era acompanhada da descivilização da nação, do Estado e das alianças político-ideológicas. 6 A estupidez retratada por Musil degenerou instituições e reorganizou as forças da política e do direito para implementar um projeto de horror. Essa estupidez “aqui não é uma doença mental, porém a doença mais perigosa da mente, perigosa para a própria vida. Decerto cada um de nós deveria rastreá-la dentro de si mesmo e não somente reconhecê-la em suas irrupções históricas”. 7 Ao longo das páginas, buscamos apresentar o direito como elemento civilizatório, na simbologia trazida neste epílogo, o direito seria meio para tratar a estupidez que acomete as mentes e as instituições num processo degenerativo. Se de fato a principal característica da estupidez é a interrupção da inteligência, aliada a uma cegueira deliberada às forças destrutivas das instituições, não é crível a compreensão do direito e do constitucionalismo, no contexto pós-moderno, sem a percepção de como a degeneração pode instrumentalizar esse direito. Também por essa razão, o direito precisa adquirir a reflexividade necessária para alcançar a capacidade cognitiva igualmente necessária para impedir sua obsolescência e até mesmo a morte, do contrário, o direito se transforma em mecanismo de implementação da estupidez e não seu neutralizador. É tarefa de todo democrata, nesse sentido, é evitar a contaminação do direito – democraticamente produzido – da força destrutiva da estupidez. Para evitarmos novos governos orientados pela estupidez degenerativa, portanto, é importante garantirmos a autonomia do direito para assegurar o espaço contramajoritário de atuação, em especial, da jurisdição constitucional. Aqui chegamos ao limite da obra: depois de numerosas páginas, não consideramos ter condição de ir além, então, finalizamos, mas não sem antes reafirmar nossa convicção no direito e na democracia como elementos cruciais do processo civilizatório de nossas democracias constitucionais, e, se de fato, conforme explicamos, o direito não pode tudo como crê o imaginário ativista de uma jurisdição omnipresente, fato é que ele, autonomamente compreendido, pode ser o filtro institucional mais poderoso contra a estupidez. Por essa razão, reconstruímos, em nossa perspectiva, o empreendimento do direito moderno até o contemporâneo pós-moderno no intuito de assegurar as condições teóricas para o próprio direito assimilar como a estupidez opera pela degeneração, ao mesmo tempo, evitando que o direito se torne obsoleto em face do contemporâneo, porque a obsolescência antes da morte pode transformá-lo no reino da estupidez, porque mais uma vez com o auxílio de R. Musil, sabemos que o reino da sabedoria é uma região desértica e geralmente evitada, em contrapartida, a estupidez é tão expansiva quanto as forças autocráticas, diferentemente da sabedoria, a estupidez não tem mistério: basta que não façamos nada para que ocorra a ascensão do seu reinado. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. São Paulo: Martins Fontes, 2019. p. 519. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. São Paulo: Martins Fontes, 2019. p. 461. “Por que o proletário não usa gravatas? Porque não sabe coloca-las. Para isso ele precisa então comprar uma presilha de gravata e depois de compra-la percebe que é ruim e não consegue prender a gravata. Isto é enganação, isto deixa o povo amargurado, empurra a Alemanha ainda mais fundo na penúria em que já está. Por que, por exemplo, não se usavam estas grandes presilhas de gravata? Porque ninguém quer pendurar uma pá de lixo no pescoço”. Ibidem, p. 73. Ibidem, p. 89. Ver ainda: DAVIDSON, Arnold I. Reflexões sobre o nacional-socialismo. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016. p. 27. “A importância atribuída a esse sentimento do corpo, com o qual o espírito ocidental nunca quis se contentar, está na base de uma nova concepção do homem. O biológico, com tudo o que comporta de fatalidade, torna-se mais do que um objeto da vida espiritual: torna-se seu coração. As vozes misteriosas do sangue, os apelos da hereditariedade e do passado aos quais o corpo serve de veículo enigmático perdem sua natureza de problemas submetidos à solução de um Eu soberanamente livre. O Eu, para resolvê-los, não traz senão as próprias incógnitas desses problemas. Ele é constituído por elas. A essência do homem não está na liberdade, e sim numa espécie de agrilhoamento. Ser verdadeiramente si mesmo não é retomar seu voo por sobre as contingências, sempre estranhas à liberdade do Eu; pelo contrário, é tomar consciência do agrilhoamento original inelutável e único a nosso corpo; é, sobretudo, aceitar esse agrilhoamento. (...) A partir daí, toda estrutura social que anuncia uma libertação em relação ao corpo, sem engajá-lo, torna-se suspeita como um renegamento, uma traição. As formas da sociedade fundada sobre o acordo das vontades livres se afigurarão não só frágeis e inconsistentes, mas também falsas e enganadoras. O igualamento dos espíritos perde a grandeza do triunfo do espírito sobre o corpo. Torna-se obra de falsários. Dessa concretização do espírito decorre imediatamente uma sociedade de base consanguínea. E então, se a raça não existe, é preciso inventá-la”. LEVINAS, Emmanuel. Algumas reflexões sobre a filosofia do hitlerismo. Reflexões sobre o nacional socialismo. Belo Horizonte: Editora Âyiné. p. 63-64. MUSIL, Robert. Sobre a estupidez. Belo Horizonte: Âyiné, 2016. p. 29-30. Ibidem, p. 55.

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