4.7 - Limites à autonomia da vontade - 4 - Fontes e Limites da Competência do Árbitro para Tutelas de Urgência

4.7. Limites à autonomia da vontade A autonomia da vontade é a forma mais comum de outorgar-se competência aos árbitros para a concessão de tutelas de urgência (supra, n. 4.2). Essa mesma autonomia da vontade é capaz de, até mesmo, excluir eventual competência dos árbitros no que diz respeito às tutelas de urgência, quando prevista essa competência padrão (default rule) no regulamento adotado ou pela lex arbitri, em ato de verdadeiro opt out (supra, n. 4.6). Precisa-se analisar, ainda, interessante questão: diante de uma lex arbitri proibitiva ou restritiva quanto ao poder de concessão de tutelas de urgência, qual conduta deve ser adotada pelos árbitros? Se a lei aplicável estabelecer que os árbitros não possuem competência para a concessão de tutelas de urgência, mas as partes dispuserem em sentido contrário, os árbitros podem ignorar a lex arbitri e cumprir a sua função de forma a responder às expectativas das partes? A prática demonstra que os árbitros, em regra, obedecem à limitação imposta pela lex arbitri. 1 Evidentemente, não é desejável aos árbitros a inobservância da lei que rege o processo arbitral conduzido por eles. Como eventual decisão proferida em conflito com norma de caráter imperativo ou cogente, em princípio, pode ser impugnada no local em que foi proferida, parece desaconselhável a sua concessão, notadamente por ir de encontro com a preocupação de celeridade e efetividade do processo arbitral. 2 De nada adiantaria o desperdício de tempo e dinheiro das partes com decisões arbitrais inócuas. A partir do momento em que a lex arbitri, de forma expressa, proíbe ou restringe os poderes dos árbitros para a concessão de tutelas de urgência, pode-se dizer que essa norma possui caráter imperativo ou cogente, retirando do campo da autonomia da vontade das partes a possibilidade da sua utilização ou não. 3 O campo de manobra das partes está restrito ao que a doutrina denomina de leis dispositivas ou facultativas, que “se limitam a permitir ação ou abstenção, ou a suprir declaração de vontade inexistente”. 4 Por esse motivo, Nigel Blackaby, Constantine Partasides, Alan Redfern e Martin Hunter mencionam que a competência para concessão de tutelas de urgência pelo tribunal arbitral está dentro dos limites permitidos pela lei aplicável. 5 Pierre Karrer possui idêntica posição, afirmando que se a lex arbitri é restritiva à concessão de tutelas de urgência pelo tribunal arbitral, a “autonomia da vontade, incluindo a referência a regulamentos arbitrais, para concessão de medidas de urgência, não fará nenhum bem”. 6 Andrea Carlevaris, ao falar sobre a legislação italiana, que possui proibição à concessão de tutelas de urgência por árbitros (infra, n. 5.2.1), afirma que a reserva da competência às cortes estatais possui natureza inderrogável. 7 Como consequência, afirma que a posição majoritária da doutrina é de que qualquer acordo no sentido contrário à proibição legislativa seria ineficaz, de forma a não eliminar a competência do juiz para decidir sobre o assunto e, ao mesmo tempo, não possibilitar a assistência do aparato estatal para a efetivação da medida. 8 A solução acima apresentada (da direta limitação da vontade das partes pela lex arbitri), cuja aplicabilidade é mais tranquila quando se trata de arbitragem interna, merece um comentário adicional no caso de arbitragem internacional. Não se pode ignorar que as decisões arbitrais possam ter alcance extraterritorial, restringir a sua análise aos limites do local onde foi proferida, significa ignorar relevante papel das decisões arbitrais, notadamente em arbitragens internacionais. 9 Mesmo nos casos em que a lex arbitri proíbe ou restringe a utilização das tutelas de urgência arbitral, os árbitros podem ver-se diante de cenário no qual a medida urgente será executada em local diverso daquele em que a tutela de urgência é proferida. Exemplificando: a medida de urgência arbitral proferida em uma arbitragem com local no território italiano (onde há proibição expressa de concessão de tutelas de urgência arbitral, infra n. 5.2.1) pode vir a ser executada em algum outro país (onde há bens que serão indisponibilizados). Mesmo que praticamente impossível a execução dessa medida em território italiano, não se deve ignorar o fato de que outros países podem, em razão da sua legislação interna, optar por reconhecer e efetivar essa medida – ignorando a previsão anacrônica da legislação italiana. 10 Muito embora não seja usual que árbitros adotem medidas em sentido contrário ao da lex arbitri, não se pode descartar situação em que, por causa dos valores envolvidos, haja a necessidade de decretação de uma tutela de urgência para execução em outro país, principalmente porque esse tipo de proibição não corresponde atualmente às expectativas da comunidade empresarial. 11 Da mesma forma, pode ocorrer de as partes não possuírem nenhuma ligação com o local da arbitragem, de forma que a tutela de urgência pleiteada não estará sujeita à efetivação no local em que existe a previsão restritiva. Ficará sob o campo da soberania do país que receber a decisão arbitral reconhecê-la e executá-la ou não. 12 Outro aspecto relevante é que as restrições impostas pela lex arbitri não possuem a capacidade de proibir os árbitros de emitirem decisões não vinculantes relacionadas ao pedido de tutela de urgência, tal como uma mera recomendação. 13 Embora essa decisão possa não ser passível de efetivação no local da arbitragem, para determinadas situações em que não haja a necessidade de intervenção das cortes estatais (infra, n. 10.3), a simples recomendação do tribunal arbitral pode ser suficiente. Em via de regra, decisões proferidas pelos tribunais arbitrais são cumpridas voluntariamente (infra, n. 10.1). 14 A despeito do interesse teórico das duas ressalvas acima expostas, fato é que, na prática, será muito mais simples a utilização das cortes estatais. Para os casos em que a lex arbitri proíbe ou restringe os árbitros de decretar tutelas de urgência, o papel das cortes estatais acaba sendo essencial e primário. Conforme ressalta Ali Yesilirmak, a prática da arbitragem internacional desenvolveu-se ao longo dos anos, exatamente por evitar conflito com as legislações nacionais (cf. Provisional measures in international commercial arbitration, p. 59, nota de rodapé n. 52). Gary Born faz afirmação semelhante e informa que um “arbitrator will seldom grant provisional relief unless he is satisfied that the national arbitration legislation applicable to the arbitral proceedings (typically, the arbitration legislation of the arbitral seat) allows him to do so” (cf. International comercial arbitration, v. 2, p. 1.949). YESILIRMAK, Ali. Provisional measures in international commercial arbitration, p. 59-60; LAPIEDRA ALCAMÍ, Rosa. Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, p. 245. De acordo com lição de Julian Lew, Loukas Mistelis e Stefan Kröll, “limitations on the autonomy of the parties and the tribunal to regulate the procedure may result from the mandatory provisions of the law of the place of arbitration. These mandatory rules of the place of arbitration define the outer boundaries within which parties and arbitrators may operate” (cf. Comparative international commercial arbitration, § 21-14, p. 524). No mesmo sentido, Goffredo Telles Junior, “As leis impositivas – também denominadas absolutas, cogentes (jus cogens), leis de ordem pública – são as que ordenam ou proíbem da maneira absoluta, em determinadas circunstâncias. São leis que, em circunstâncias certas, mandam fazer ou deixar de fazer, ou fixam o estado das pessoas, sem admitir alternativa. Nas condições para as quais são promulgadas, estas leis não deixam margem para o arbítrio das pessoas” (cf. Iniciação na ciência do direito, p. 155). Roque Komatsu faz questão de mencionar, todavia, que saber “se uma norma é cogente ou dispositiva é questão de interpretação” (cf. Da invalidade do processo civil, p. 145 e ss.). TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito, p. 157. Cf. Redfern and Hunter on international arbitration, § 6.10, p. 366 e ss. Cf. Interim measures issued by arbitral tribunals and the courts: less theory please, p. 98. Na versão original: “party autonomy, including a reference in arbitration rules to issue interim measures, will do no good”. No mesmo sentido: CARLEVARIS, Andrea. La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, p. 46 e ss. As normas cogentes ou imperativas atuam, pelo aspecto negativo, conforme lembrado por Marcos Montoro, como “um limitador, uma cerca”, de forma a impedir a flexibilização (construção ou adaptação) do procedimento arbitral pelas partes (cf. Flexibilidade do procedimento arbitral, n. 11, p. 190). CARLEVARIS, Andrea. La tutela cautelare nell´arbitrato internazionale, p. 272. A Corte di Cassazione considera que eventual concessão de tutelas de urgência pelo árbitro violaria a ordem pública italiana, cf. Corte di Cassazione, sentenza 23.746 (10.11.2009). CARLEVARIS, Andrea. La tutela cautelare nell´arbitrato internazionale, p. 272. Apenas a título de esclarecimento, menciona-se que Ferrucio Tommaseo, por exemplo, defende que essa previsão não seria ineficaz, mas sim nula (cf. Lex fori e tutela cautelare nell’arbitrato commerciale internazionale, p. 24). Essa discussão, todavia, não possui relevância para este tópico. GAILLARD, Emmanuel. Legal theory of international arbitration, § 36, p. 32 (“The fact that, at times, the country of the seat would also be the country or one of the countries of enforcement does not mean, from an analytical point of view, that one should not evaluate the respective weight of each of these two distinct titles in contemplating the situation in which they do not coincide”). Irrepreensível a observação de Julian Lew, voltada para arbitragem internacional, mas que deve ser aplicada para qualquer modalidade de arbitragem: “The ideal and expectation is for international arbitration to be established and conducted according to internationally accepted practices, free from the controls of parochial national laws, and without the interference or review of national courts. Arbitration agreements and awards should be recognised and given effect, with little or no complication or review, by national courts” (cf. Achieving the dream: autonomous arbitration, p. 179 e ss.). Muito embora Gary Born afirme, como já demonstrado acima, que árbitros raramente concedem tutela de urgência em desacordo com a legislação apicável, ressalta que a proibição geral para concessão de tutelas de urgência, em desacordo com a vontade das partes, vai de encontro à Convenção de Nova Iorque, pois esta proíbe que Estados signatários simplesmente neguem efeito às convenções de arbitragem que concedem competência aos árbitros para tutelas de urgência arbitrais: “where the parties have expressly granted the arbitrators power to order provisional measures, the law of the arbitral seat should generally be regarded as violating the New York Convention’s requirement that Contracting States recognize international arbitration agreements, including with regard to the arbitral procedure” (cf. International commercial arbitration, v. 2, p. 1.962 e também na p. 1.948, nota de rodapé 28). Mais uma vez, deve-se lembrar que países signatários da Convenção de Nova Iorque possuem a obrigação de garantir efetividade às convenções de arbitragem. Como pondera Gary Born: “the better view is that the text and structure of the New York Convention forbid Contracting States from simply denying effect to all arbitration agreements empowering arbitrators to grant provisional measures” (cf. International commercial arbitration, v. 2, p. 1.947-1.948). Essa afirmação é feita por Andrea Carlevaris ao opinar sobre o assunto sob a perspectiva do ordenamento italiano (cf. La tutela cautelare nell´arbitrato internazionale, p. 273). YESILIRMAK, Ali. Provisional measures in international commercial arbitration, p. 59, nota de rodapé n. 50.

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