5.2 - Visão do passado: competência exclusiva dos juízes - 5 - Competência para as Tutelas de Urgência Arbitrais

5.2. Visão do passado: competência exclusiva dos juízes Tradicionalmente, a competência para conceder tutelas de urgência, em litígios submetidos à jurisdição arbitral, era exercida com exclusividade pelas cortes estatais. 1 Conforme já mencionado, durante o transcorrer do século XVIII até meados do XX, viu-se a adoção de legislações arbitrais por diversos países (supra, 2.1). 2 Esse movimento, porém, em vez de fortalecer o desenvolvimento da arbitragem, trouxe em contrapartida hostilidade. A arbitragem era vista com desagrado. Não era admitido que um mecanismo privado de resolução de litígios pudesse substituir o controle e diminuir a autoridade do Poder Judiciário. 3 A postura das cortes estatais poderia ser resumida em três pontos: (i) qualquer atividade ocorrida em determinado Estado deveria estar no âmbito de controle da jurisdição estatal e das leis locais; (ii) o Estado poderia perder sua autoridade e respeito ao permitir que a última palavra sobre certa questão não fosse dada por seu Poder Judiciário; (iii) mecanismos alternativos de resolução de litígios não poderiam ser mais efetivos e eficientes que a própria jurisdição estatal. 4 De acordo com Roy Goode, essa hostilidade não era restrita ao Poder Judiciário da Inglaterra, mas um fenômeno generalizado. 5 Um dos aspectos desse fenômeno era a ampla necessidade de controle (quase irrestrito) estatal de eventuais decisões arbitrais que pudessem afetar diretamente a vida das pessoas. 6 Nas palavras de Julian Lew, a “arbitragem era permitida como uma exceção, não como um direito” 7 . Os poderes do árbitro deveriam ser limitados, pois, se assim não fossem, isso faria dele um “julgador em tudo e por tudo idêntico, em extensão e qualidade de poderes, ao juiz ordinário, quase um juiz paralelo” 8 . Consequência dessa linha de pensamento era a necessidade de verdadeiro domínio, pelas cortes estatais, de atos que pudessem afetar imediatamente a vida das pessoas. 9 Seria inadmissível que árbitros pudessem emitir decisões com base em cognição sumária, sob pena de privar as partes das supostas garantias oferecidas pela jurisdição estatal. 10 Por mais que se admitisse uma cognição sumária exercida por julgadores privados, a prática de imperium não poderia (como, de fato, não pode) ser exercida por eles. Aliás, somente juízes ou autoridades estatais podem exercer atos de autoridade, visto que esses poderes decorrem de atos de soberania, cujo monopólio é do Estado. 11 A questão, porém, não se limitou à ausência de imperium (competência executiva) dos árbitros. 12 Da impossibilidade de os árbitros exercerem poderes de autoridade, passou-se a inferir uma suposta impossibilidade de concessão de tutelas de urgência. 13 Percebe-se, assim, uma verdadeira tautologia, com mistura entre momentos distintos da atividade jurisdicional. De acordo com essa interpretação absolutamente equivocada, como os árbitros não possuem imperium para executar as suas decisões, não poderiam decretá-las. E não poderiam decretá-las porque não têm imperium para executá-las. 14 Assumindo a incorreta premissa de que os árbitros não poderiam conceder tutelas provisórias e urgentes porque efetivamente não possuiriam competência para executá-las, poder-se-ia chegar ao absurdo de negar ao árbitro também o poder de conceder tutelas definitivas (sentenças), pois não poderiam executá-las. 15 A confusão entre iuris dictio e imperium era evidente. 16 A despeito de essa postura representar, sem dúvida alguma, o espírito de legisladores do passado, ainda hoje existem (poucas) legislações arbitrais que mantêm esse anacronismo injustificável. 17 Em 1971, Salvatore Satta afirmava: “che gli arbitri non possano concedere o imporre provvedimenti cautelari è antico e universalmente riconosciuto principio” (apud POZZI, Vittorio. Arbitrato e tutela cautelare: profili comparatistici, p. 17). LEW, Julian D. M. Achieving the dream: autonomous arbitration, p. 181-184. DOMKE, Martin. Domke on commercial arbitration, par.2-10 e ss. LEW, Julian D. M. Achieving the dream: autonomous arbitration, p. 182; GOODE, Roy. The role of the lex loci arbitri in international commercial arbitration, p. 18. GOODE, Roy. The role of the lex loci arbitri in international commercial arbitration, p. 18-19. William Park cita o exemplo da lei inglesa anterior a 1979 para afirmar que, naquela época, o Poder Judiciário literalmente supervisionava o processo arbitral para “assegurar” resultados legalmente corretos (cf. Lex loci arbitri and international commercial arbitration, p. 21). LEW, Julian D. M. Achieving the dream: autonomous arbitration, p. 182-183. (tradução livre) LA CHINA, Sergio. L’arbitrato, p. 146-147 (“La ratio di tale atteggiamento del legislatore è la sua contrarietà ad investire gli arbitri di potere accedenti la mera cognizione (di accertamento, costitutiva, o condanna), ed a farne quindi un soggetto giudicante in tutto e per tutto identico, per estensione e qualità di poteri, al giudice ordinario, quasi un giudice parallelo”). LAPIEDRA ALCAMÍ, Rosa. Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, p. 77. CARLEVARIS, Andrea. La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, p. 255. Deve-se notar, todavia, que até mesmo no campo do processo estatal já houve o entendimento de que processos sumários seriam incompatíveis com os princípios e objetivos da “civilização moderna”, que exigiria um processo teleologicamente voltado para a descoberta da verdade e preocupado com a segurança jurídica. Sobre o assunto, cf. SILVA, Ovídio Baptista da. Comentários ao Código de Proceo Civil, v. XI, p. 15 e ssss. LA CHINA, Sergio. L’arbitrato, p. 147; CAIVANO, Roque. Arbitraje, p. 235. Leonardo Greco, depois de apontar, de forma interessante, “que a soberania é um conceito em crise, principalmente no atual contexto de formação dos chamados blocos econômicos, cujo mais singular exemplo é a União Europeia”, relata que o poder de coerção (imperium) “encontra a sua expressão mais forte na atividade jurisdicional de execução”, e essa desdobra-se nos “poderes de apreensão, expropriação e administração” (cf. Instituições de processo civil, v. 1, n. 4, p. 109 e 111). Zanzucchi afirma que a jurisdição compreenderia três faculdades: (i) faculdade de decisão (notio); (ii) faculdade de documentação; e (iii) faculdade de coerção (imperium). O árbitro não está dotado apenas da última faculdade (cf. Diritto processuale civile, v. 1, n. 12, p. 13 e ss.). COSTA E SILVA, Paula. A arbitrabilidade de medidas cautelares, p. 211 e ss. Irrepreensível o raciocínio feito por Paula Costa e Silva: “Ora, se os tribunais arbitrais não têm competência executória, estando-lhes vedado praticar directamente actos de autoridade, eles têm competência declarativa, pelo que podem ser admitidos a pronunciar- se sobre a admissibilidade e a procedência da providência, apesar de esta poder visar, como resultado último, a realização de actos daquele tipo” (cf. A arbitrabilidade de medidas cautelares, p. 211 e ss.). Essa constatação não passou despercebida por Roque Caivano, ao tecer críticas sobre essa confusão: “Así como el laudo es dictado por los árbitros pero ejecutado por los jueces del Estado, sería lógicamente possible admitir que las medidas cautelares pueden correr igual sorte” (cf. Arbitraje, n. 7.1, p. 236). De forma bem firme, Francesco Luiso também utiliza o mesmo argumento: “E se gli arbitri, quantunque sforniti di imperium, possono incidere in modo definitivo nella sfera giuridica delle parti, non si vede perché non vi possano incidere in modo provvisorio (cf. Appunti sull’arbitrato societario, p. 724). A distinção entre cognição e execução situa-se, essencialmente, na finalidade que cada uma possui. Conforme clássica definição de Liebman, na cognição busca-se “descobrir e formular regra juridical concreta que deve regular o caso” e na execução o objetivo é “efetivar o conteúdo daquela regra, para modificar os fatos da realidade de modo a que se realize a coincidência entre a regra e os fatos” (cf. Processo de execução, n. 18, p. 43). Em outras palavras, ao árbitro é permitida apenas tutela de conhecimento ou cognição, que “visa predominantemente a superar a crise de certeza do direito material, mediante a investigação do direito e do fato jurídico, daí decorrendo o possível reconhecimento da eficácia determinada pelo direito material, objeto da pretensão processual” (cf. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Perfil dogmático da tutela de urgência, p. 17). Interessante notar que, na monografia de Yesilirmak, publicada em 2005, citava-se, além de Itália e China, que serão objeto de análise mais detida a seguir, as legislações da Áustria, da República Checa, de El Salvador, da Finlândia, do Principado de Liechtenstein, da Malásia, de Omã, do Panamá e da Provícia de Quebec. Atualmente, conforme se pesquisou para fins deste trabalho, todos esses países já possuem legislação que permite a concessão de tutelas de urgência arbitrais. A Argentina, que não constava dessa lista, tinha a seguinte previsão no art. 753 do Código Procesal Civil y Comercial de la Nación: “Los árbitros no podrán decretar medidas compulsorias ni de ejecución. Deberán requerirlas al juez y éste deberá prestar el auxilio de su jurisdicción para la más rápida y eficaz sustanciación del proceso arbitral”. A despeito de haver doutrina que afirme a competência dos árbitros no direito argentino (cf., por exemplo, CAIVANO, Roque. Arbitraje, p. 238), João Bosco Lee citava precedentes das cortes estatais daquele país que reconheciam a ausência de competência dos árbitros (cf. Arbitragem comercial internacional nos países do mercosul, p. 161 e ss.). No final de 2015, o Código Civil y Comercial de la Nación passou a prever, no art. 1655, que “excepto estipulación en contrario, el contrato de arbitraje atribuye a los árbitros la facultad de adoptar, a pedido de cualquiera de las partes, las medidas cautelares que estimen necesarias respecto del objeto del litigio. Los árbitros pueden exigir caución suficiente al solicitante. La ejecución de las medidas cautelares y en su caso de las diligencias preliminares se debe hacer por el tribunal judicial. Las partes también pueden solicitar la adopción de estas medidas al juez, sin que ello se considere un incumplimiento del contrato de arbitraje ni una renuncia a la jurisdicción arbitral; tampoco excluye los poderes de los árbitros”.

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