9.11 - Revisão das tutelas de urgência - 9 - Tutelas de Urgência Perante o Tribunal Arbitral

9.11. Revisão das tutelas de urgência As tutelas de urgência são, por suas próprias características, medidas sumárias e provisórias, sem capacidade de formar coisa julgada material, e estão sujeitas a revisão (supra, n. 3.2). Essa revisão pode ser para (i) manter; (ii) modificar; (iii) revogar a tutela de urgência anteriormente concedida; ou, até mesmo, (iv) conceder a tutela de urgência anteriormente negada. Imagine-se hipótese na qual, no começo do processo arbitral, o árbitro conceda tutela de urgência em favor do autor. Durante o curso do processo, surgem novos elementos probatórios ou a alteração do estado de fato, de forma a constatar o desacerto parcial ou total da decisão inicial. Nesse cenário, não há óbice a que o árbitro reveja a decisão anterior. A mesma conclusão é válida para hipótese exatamente contrária, de rejeição inicial da tutela de urgência, com posterior concessão. 1 Aliás, nem mesmo no processo estatal brasileiro, marcado por maior rigidez, haveria impossibilidade de reanálise dessas questões, uma vez que se estaria diante de cenário diferente do inicial. 2 As hipóteses acima mencionadas dizem respeito à relação do árbitro com as tutelas de urgência tomadas anteriormente por ele próprio. É preciso, todavia, também fazer algumas considerações para o caso de a medida ter sido proferida pelas cortes estatais em demanda de caráter antecedente. O árbitro teria, nesse caso, mesmo sem nenhuma modificação fática, competência para rever a decisão proferida pelo juiz? Pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei de Arbitragem, Joel Figueira Jr. defendeu que, depois do deferimento da medida pelo juiz, o árbitro não poderia revogá-la, “e assim deve ser porque a soberania das decisões do Poder Judiciário se sobrepõe à instauração posterior de jurisdição paraestatal”. 3 Arnoldo Wald posicionou-se no mesmo sentido, afirmando que o tribunal arbitral seria “incompetente para extinguir a medida cautelar concedida pelo juiz”. 4 Existem decisões de tribunais arbitrais também entendendo que seria um ato “muito sério” ou que os tribunais arbitrais não teriam competência para rever a decisão prévia da corte estatal. 5 No entanto, esse não é o melhor entendimento sobre o assunto. Ao analisar a relação entre árbitros e juízes, este trabalho ressaltou a necessidade de coexistência das jurisdições arbitral e estatal (supra, n. 2.6), mas esse bom relacionamento só é possível se cada órgão jurisdicional tiver plena consciência de seu papel. Por esse motivo, as bases teóricas desenvolvidas anteriormente neste trabalho são relevantes, de forma a demonstrar que a competência para tutelas de urgência arbitrais, diante do direito brasileiro, é do árbitro (supra, n. 6.3.2). Uma vez que a decisão das cortes estatais só se justifica em caso de limitação material ou jurídica à competência dos árbitros (supra, n. 5.5), nada mais correto do que estes terem a possibilidade de rever a decisão estatal imediatamente. Mesmo antes da reforma da Lei de Arbitragem, essa já era a conclusão quando se compreendia que, pela característica essencialmente provisória da tutela de urgência, é dever do árbitro rever a questão, no cenário mais demorado, quando da emissão da sentença arbitral. 6 O Superior Tribunal de Justiça também já havia consignado que “superadas as circunstâncias temporárias que justificavam a intervenção contingencial do Poder Judiciário”, a competência passa a ser do tribunal arbitral, para que ele, “se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão”. 7 Não há sentido lógico em permitir a revisão da tutela de urgência concedida pelo juiz posteriormente, no ato da sentença arbitral, e proibir a revisão imediata. 8 Essa revisão é justificada pela autonomia da vontade das partes, tantas vezes já mencionada neste trabalho. 9 Considerando que as partes escolheram que competiria ao árbitro decidir sobre as tutelas de urgência, a vontade inicial das partes só estará mantida se for permitido aos árbitros rever a tutela de urgência proferida pelo juiz. 10 Eliminando qualquer dúvida que ainda pudesse existir para alguns, o art. 22-B, da Lei de Arbitragem reformada, determina de forma clara que “caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário”. Essa mesma linha de entendimento é adotada, por exemplo, pelo English Arbitration Act 1996, ao prever que “uma ordem concedida por ela [corte estatal] sob esta seção deixará de ter efeito em todo ou em parte em razão de ordem do tribunal [arbitral] ou de qualquer tribunal ou de outra instituição ou pessoa que tenha competência para agir em relação ao assunto objeto da ordem” (art. 44 (6)). 11 A Lei Modelo da UNCITRAL, no art. 17-D, também estabelece a viabilidade de o tribunal arbitral “alterar, suspender ou revogar uma tutela de urgência ou ordem preliminar que tenha concedido”. 12 Diante do que foi acima exposto, mostra-se o claro equívoco de eventual decisão do juiz determinando, por exemplo, que a tutela de urgência deferida por ele, em caráter antecedente, permaneça em vigor até a superveniência de sentença arbitral. O juiz estaria, no caso, extrapolando totalmente o campo de atuação da sua competência de urgência. O raciocínio acima utilizado, para revisão de tutelas de urgência concedidas em caráter antecedente, serve integralmente para aquelas proferidas pelo juiz durante o curso do processo arbitral, mediante circunstância excepcional (supra, n. 5.5.2). Um último esclarecimento merece ser feito. Quando os árbitros assumem (no caso da demanda antecedente) ou reassumem (no caso de impossibilidade momentânea durante o curso do processo arbitral) a competência para as tutelas de urgência, eles têm o poder-dever de rever a tutela de urgência concedida ou negada pelo juiz, mas, caso assim não o façam, a decisão da corte estatal simplesmente continua em vigor, mantida na sua integralidade. 13 De qualquer forma, no cenário mais demorado, os árbitros devem manifestar-se sobre a tutela de urgência no momento em que proferirem a sentença arbitral, sob pena de a prestação jurisdicional não estar completa. Sobre a preclusão no processo arbitral, cf. PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema, p. 118 e ss. Cf. ainda ALVES, Rafael Francisco. O devido processo legal na arbitragem, p. 404. Embora haja, como bem lembra Heitor Sica, preclusão também para tutelas de urgência, a alteração do estado de fato ou os novos elementos probatórios modificam, na realidade, o cenário fático jurídico de forma a viabilizar nova apreciação pelo julgador (cf. Preclusão processual civil, p. 243-244). De acordo com o art. 296 do Código de Processo Civil de 2015, “a tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada”. De forma similar também o art. 669-decies do Codice di Procedura Civile italiano: “nel corso dell’istruzione il giudice istruttore della causa di merito può, su istanza di parte, modificare o revocare con ordinanza il provvedimento cautelare, anche se emesso anteriormente alla causa, se si verficano mutamenti nelle circostanze o se si allegano fatti anteriori di cui si e’ acquisita conoscenza successivamente al provvedimento cautelare”. Cf. Arbitragem, jurisdição e execução, p. 224. Cf. Novos rumos para a arbitragem no Brasil, p. 351. Mauro Rubino-Sammartano possui posição inusitada: à medida que adota a mesma premissa equivocada de que os árbitros não teriam competência para para rever a decisão do árbitro, sugere que os árbitros podem determinar à parte beneficiada pela ordem estatal não a execute, ou seja, que retire a efetividade da decisão do juiz (cf. International arbitration law and practice, n. 24.7, p. 645-646). Como relata Gary Born, um tribunal arbitral entendeu que seria “very serious to order the parties to modify a provisional measure previously ordered by a national court” e rejeitou o pedido de revisão. Em outro caso, o tribunal arbitral entendeu que não seria competente para rever a decisão do juiz (cf. International commercial arbitration, v. II, p. 2.010). Carmona menciona que sempre “haverá um momento em que se entrecruzará a competência dos árbitros e do juiz: deferida a medida cautelar pelo juiz togado (seja em caráter liminar, por decisão interlocutória, seja em caráter final, por sentença cautelar), tocará ao árbitro, ao proferir sua decisão, manter ou cassar a medida cautelar” (cf. Arbitragem e processo, p. 326). STJ, REsp 1297974/RJ , Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12.06.2012, DJe 19.06.2012. Merece transcrição integral, pela qualidade do texto, a opinião de Fouchard, Gaillard e Goldman sobre o assunto: “The jurisdiction of the courts does not deprive the arbitrators of the possibility of ruling in the last resort. The provisional nature of interim orders enables the arbitrators to review measures taken by the courts. Thus, for example, where a court orders the continuation of works, but the arbitral tribunal considers that to be unwarranted, there is nothing to prevent the tribunal from subsequently ordering the works to cease. Where there is a conflict between provisional decisions of this kind, the decision of the arbitral tribunal, which has jurisdiction to rule on the merits of the dispute, should prevail. This is because the only justification for applying to the courts lies in the presumption that they are equipped to take the protective measure required in the circumstances more rapidly” (cf. Fouchard, Gaillard, Goldman on international commercial arbitration, § 1330, p. 722). Lapiedra Alcamí relata que, de acordo com pesquisa por ela realizada, não encontrou nenhum precedente no qual o tribunal arbitral teria revisado a tutela de urgência adotada pela corte estatal em demanda antecedente e que “los árbitros se muestran expresamente reticentes a ir en contra de una medida previamente acordada por un juez” (cf. Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, p. 211). Adiante, Lapiedra Alcamí declara que o árbitro “se siente vinculado por la decisión judicial” (cf. Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, p. 211). Conforme explicado acima, não existe nenhum fundamento jurídico para esse tipo de comportamento por parte dos árbitros (cf. KARRER, Pierre. Interim measures issued by arbitral tribunals and the courts: less theory, please, p. 109). CARMONA, Carlos Alberto. Das boas relações entre os juízes e os árbitros, p. 23. Marcos Montoro levanta hipótese interessante na qual as partes poderiam acordar que somente seria permitido ao árbitro rever as tutelas de urgência concedidas pelos juízes na sentença final. Essa opção parece fazer sentido naquelas hipóteses em que as partes decidem proibir os árbitros de proferirem decisões relacionadas ao assunto. A autonomia da vontade das partes deve prevalecer (cf. Flexibilidade do procedimento arbitral, n 19.6, p. 332). Cf. art. 44 (6) do English Arbitration Act 1996: “If the court so orders, an order made by it under this section shall cease to have effect in whole or in part on the order of the tribunal or of any such arbitral or other institution or person having power to act in relation to the subject matter of the order”. Cf. redação orginal do art. 17-D: “The arbitral tribunal may modify, suspend or terminate an interim measure or a preliminary order it has granted, upon application of any party or, in exceptional circumstances and upon prior notice to the parties, on the arbitral tribunal’s own initiative”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo, p. 328. Por sua vez, o art. 17-D da Lei Modelo da UNCITRAL, transcrito neste item em nota de rodapé anterior, admite a revisão ex officio da tutela de urgência “em circunstâncias excepcionais e mediante notificação prévia das partes”.

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