1.3.2 As inconsistências das teorias qualitativa e quantitativa

1.3.2. As inconsistências das teorias qualitativa e quantitativa Em síntese, os teóricos da corrente qualitativa sustentam que as condutas delituosas seriam mala in se e as infrações administrativas mala quia prohibita. Há nessa construção um claro “artificialismo”, na expressão de Nelson Hungria. 1 Tanto as normas que estabelecem crimes quanto as que criam infrações administrativas são normas jurídicas e integram o ordenamento jurídico. Ademais, ambas tem por objetivo preservar bens jurídicos tidos como relevantes pela coletividade. 2 Caso contrário, não poderiam constituir um ilícito. Consoante o magistério de José Roberto Pimenta Oliveira, “não se deve tipificar qualquer conduta, senão aquelas que lesionem ou coloquem em perigo os bens jurídico-administrativos, colimados e resguardados pela referida atividade”. 3 Ademais, como bem salienta Manuel Gómez Tomillo, “a evidente diferença de gravidade entre alguns dos comportamentos de que se ocupam o direito penal e o direito administrativo sancionador não se tem que traduzir em uma diferente natureza jurídica de um e outros ilícitos”. 4 Também não prospera a diferenciação entre os interesses dos indivíduos ou da sociedade, supostamente tutelados pelo direito penal, e os interesses da Administração Pública, que seriam resguardados pelo direito administrativo sancionador. A Administração Pública não constituiu um fim em si mesmo. Sua existência somente se justifica se sua atuação der-se em prol da coletivi- dade. Daí Marçal Justen Filho asseverar que “o chamado ‘interesse secundário’ (Alessi) ou ‘interesse da Administração Pública’ não é público. Ousa-se afirmar que nem ao menos são ‘interesses’ na acepção jurídica do termo. São meras conveniências circunstanciais, alheias ao direito”. 5 Sem que se cogite haver ofensa à Constituição Federal de 1988, sanções administrativas têm sido cominadas para condutas que causam dano a direitos subjetivos como a saúde. É o caso da cassação de registro profissional do Médico, imposta pelos Conselhos Regionais de Medicina com fundamento no art. 22, e, da Lei 3.268/1967. Por outro lado, “tem sido uma constante o recurso às leis penais para atender interesses conjunturais do Estado ou de grupos de pressão”, dando ensejo a uma verdadeira “hiperinflação legislativa” em matéria criminal, consoante a lição de René Ariel Dotti. 6 É o que ocorre, recorda Alexandre Knopfholz, “nos delitos tributários: uma vez efetuado o pagamento do tributo, extingue-se a punibilidade do réu. A criminalização da sonegação fiscal torna-se, pois, uma técnica auxiliar de arrecadação do Estado”. 7 Tais exemplos evidenciam a inconsistência da corrente qualitativa ao pretender diferenciar os ilícitos penal e administrativo por sua natureza. O mesmo se diga da vertente quantitativa, aqui representada por Cerezo Mir, segundo o qual na demarcação dos limites entre o ilícito penal e o administrativo “deve ser levado em conta, primordialmente, a gravidade das infrações, do pondo de vista material (desvalor ético-social e cultural)”. 8 Com frequência, condutas idênticas são corretamente sancionadas tanto penal quanto administrativamente. Exemplo disso é o cometimento de fraude fiscal, que pode dar ensejo às sanções penais da Lei 8.137/1990 e às sanções administrativas da Lei 8.666/1993, nos termos do seu art. 88, I. Outro aspecto observado por Gómez Tomillo é que “dentro do mesmo direito penal também se pode estabelecer uma gradação entre diversos bens jurídicos: não tem a mesma significação a vida que a saúde, a liberdade sexual que a intimidade ou a propriedade, etc.”. 9 São essas incongruências que fazem com que predomine na doutrina brasileira a compreensão de que o critério formal, a seguir exposto, é o que melhor distingue os ilícitos penais e administrativos. HUNGRIA, Nélson. Ilícito administrativo e ilícito penal cit., p. 16. GÓMEZ TOMILLO, Manuel; SANZ RUBIALES, Íñigo. Derecho administrativo sancionador cit., p. 9 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta de. Os Princípios da razoabilidade e de proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros GÓMEZ TOMILLO, Manuel; SANZ RUBIALES, Íñigo. Derecho administrativo sancionador cit., p. 82. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo cit., p. 120. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 111. KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2013. p. 73 CEREZO MIR, José. Sanções penais e administrativas no direito espanhol cit., p. 31. GÓMEZ TOMILLO, Manuel; SANZ RUBIALES, Íñigo. Derecho administrativo sancionador cit., p. 83

Infrações e Sanções em Licitações e Contratos Administrativos: Com as Alterações da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013)

1.3.2 As inconsistências das teorias qualitativa e quantitativa

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